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José Carlos Schwarz
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O Apelo das Letras

24 Junho, 2016 - 10:55 1

O apelo das letras

A luta de libertação nacional da Guiné e de Cabo Verde não se fez apenas no campo político e militar. O combate idealizado por Amílcar Cabral e seus companheiros também teve uma vertente cultural. Na verdade, o herói da luta de libertação dos dois países oeste-africanos cedo fez da cultura uma das suas armas. “Um povo que se liberta do domínio estrangeiro não será culturalmente livre a não ser que, sem complexos e sem subestimar a importância dos contributos positivos da cultura do opressor e de outras culturas, retome os caminhos ascendentes da sua própria cultura, que se alimenta da realidade viva do meio e negue tanto as influências nocivas como qualquer espécie de subordinação a culturas estrangeiras. Vemos assim que, se o domínio imperialista tem como necessidade vital praticar a opressão cultural, a libertação nacional é, necessariamente, um acto de cultura. Com base no que acaba de ser dito, podemos considerar o movimento de libertação como a expressão política organizada da cultura do povo em luta”, disse ele no discurso intitulado “O papel da cultura na luta pela independência”, proferido na reunião de peritos sobre Noções de Raça, Identidade e Dignidade, da UNESCO, em Paris, em Julho de 1972.

O investigador guineense Carlos Lopes tem uma explicação a essa aposta cultural de Cabral. “Se o dirigente nacionalista tinha escolhido a cultura para explicitação do seu esquema de raciocínio, não o fez por acaso”, escreve Lopes na obra “Para uma leitura sociológica da Guiné-Bissau”. (16) “Para Cabral, a resistência cultural e a super-estrutura ideológica da população são dois fenómenos intimamente ligados (…). A cultura é, no plano ideológico, uma forma de resistência histórica à penetração e às tentativas de domínio estrangeiro.”

Por sua vez, o pintor cabo-verdiano Kiki Lima nota que a posição de Cabral pode ser vista como uma resposta à política cultural colonial portuguesa, nomeadamente do então ministro do Ultramar, Adriano Moreira, que visava “a abertura, o reconhecimento ou a aceitação de algumas vertentes culturais dos países africanos de expressão portuguesa”. Segundo Lima, “através da chamada abertura, a metrópole procurava desvalorizar as reivindicações de Amílcar e outros líderes africanos”. (17)

Os músicos tradicionais, quer os djidius quer os mandjuas, foram alguns dos braços desta luta cultural de Cabral para marcar a identidade dos guineenses e que, no campo de batalha, serviu para estimular os combatentes e animar as populações das zonas libertadas. Para Manecas Santos, uma das figuras da luta pela independência, o impacto da sua música foi grande. “Essas canções tinham uma dupla função: por um lado, contribuíam para a mobilização dos combatentes, destacando as dificuldades dos militares portugueses e por outro, funcionavam como um divertimento, mantendo em alto o moral dos nossos homens.” Havia muitos artistas, alguns deles ocasionais, mas a história reteve sobretudo nomes como Dominique, José Lopes, Nfamara Mané e Nfore Sambú pelos seus textos engajados e defensores da causa nacionalista. O pesquisador Mário Cissoko salienta contudo que, apesar do impacto positivo, estas animações ao ritmo do sikó chegaram a ser controladas pelos dirigentes do PAIGC, por razões estratégicas, nalgumas zonas: “Na frente Sul, as operações paravam quando chegava a hora das noitadas culturais. Amílcar Cabral chegou a mandar suspendê-las para evitar que os portugueses localizassem os combatentes e a população.”

Os artistas modernos que partilhavam os ideiais do PAIGC vão seguir as mesmas pisadas e utilizar a arte como arma, criando uma música de intervenção valorizando a luta e os combatentes, e a favor da causa pela independência. Aliu Bari e José Carlos Schwarz, fundadores com outros colegas do Cobiana Djazz, são os rostos desta corrente musical que acabaria por empolgar as pessoas através do “conteúdo das canções”, segundo Moema Parente Augel, em “Ora di kanta tchiga – José Carlos Schwarz e o Cobiana Djazz”. (18)

A situação social não lhes dava outra alternativa senão lutar pela independência para acabar com o regime colonial e as suas práticas racistas, segundo Bari: “Toda a nossa música é de intervenção; na altura, era uma forma de manifestar o sentido nacionalista. Tal como o funaná em Cabo Verde, tínhamos as nossas músicas para combater a cultura portuguesa. Não havia outra alternativa. Os indígenas ou autóctones não gozavam de nenhum direito. Pagavam o imposto de cabeça enquanto o civilizado nada pagava. Para ter um bilhete de identidade, era preciso ser civilizado, ou seja ter um nome católico como António, João ou a alcunha de um padrinho que te patrocinava. Depois dos requisitos por ele apresentados, um funcionário deslocava-se à tua casa para ver se tinhas um quarto, uma cama, uma mesa e cadeiras e uma casa de banho. O filho de um indígena só podia estudar até à terceira classe, a menos que tivesse o bilhete de identidade. Isso explica o engajamento da nossa música.” Bari foi detido na Ilha das Galinhas, juntamente com Schwarz, o rosto deste estilo intervencionista.

Poeta, como Amílcar Cabral, Schwarz é dono de uma obra rica em canções criticando o regime colonial e enaltecendo a luta levada a cabo pelo partido, destacando-se “Lua ka ta kema (a lua não queima)”, na qual apela aos guineenses a escolherem definitivamente a luta pela independência e a não se deixarem iludir pela colonização portuguesa. Na sua obra, a escritora Moema Parente Augel (19) apresenta-a como uma comparação metafórica: “A lua é o povo guineense em luta; o sol, o poder colonialista.” Já em “Ke ki mininu na tchora” (outra canção carregada de simbolismo), o compositor evoca o sofrimento das crianças devido à violência dos soldados portugueses.

Muitas das canções deste período enalteciam Amílcar Cabral pela forma como conduzia a luta. Por isso, quando ocorreu o seu assassinato, a 20 de Janeiro de 1973, em Conacri, as canções em homenagem ao pai da nacionalidade guineense e cabo-verdiana foram imediatas. Uma delas continua a ser regularmente passada nas antenas das rádios a cada 20 de Janeiro, doravante Dia dos Heróis Nacionais. Trata-se de “Sol maior pa comandante”, da autoria do compositor Atchutchi, que mistura os ritmos da marcha e do gumbé para evocar toda a história de Cabral e as principais etapas da sua luta, nomeadamente a intervenção perante a Assembleia Geral da ONU em 1962 e a audiência que o Papa Paulo VI lhe concedera em 1970, juntamente com Marcelino dos Santos e Agostinho Neto.

No dia 24 de Setembro de 1973, a Guiné-Bissau proclamou unilateralmente a sua independência no meio de grande euforia e muita esperança. Mas passado algum tempo, a desilusão e a descrença nos dirigentes do país começaram a apoderar-se dos guineenses. Esta nova realidade é imediatamente denunciada pelos músicos que não hesitam em criticar o desvio dos ideais que tinham norteado a luta. Apesar de trabalharem para o novo regime, as principais figuras da música não hesitam em criticar os desvios da administração e dos seus membros. Em “Apili”, por exemplo, Schwarz denuncia os antigos combatentes, doravante instalados em Bissau, que decidem trocar a antiga companheira das horas de luta nas matas por uma citadina educada. (20)

Autor da música de “Mindjeris di panu pretu” (Armando Salvaterra é o autor do texto), canção emblemática da luta pela independência e um dos clássicos da discografia guineense, Aliu Bari também criticou as derivas do regime no poder nos anos 1980 em “Na kansera, na sabura” (21). O autor questionava o caminho que se tinha tomado e que podia prejudicar o povo. “Não era por sermos funcionários que tínhamos deixado de ser revolucionários e de ter um olhar crítico. Durante aquela época, houve muitas músicas criticando a situação. Apesar disso, não nos aconteceu nada porque se o Estado nos tivesse declarado a guerra, estaria a censurar a si próprio porque fazíamos parte do Estado”, nota Bari.

Sorte diferente tiveram os membros do Super Mama Djombo após a gravação de “Difuntu na djopoti” nos anos 1980. Todos, com excepção da cantora Dulce Neves, estiveram detidos durante três dias por causa daquela canção. Por seu turno, Sidónio Pais, “Sidó”, lembra que os dois discos gravados pelo conjunto Sabá Miniambá (“Abós kinkons de vida” e “Cau Tindji”) “foram alvos de forte censura pelo então Governo da Guiné-Bissau, mormente através da proibição de passagem desses temas na rádio. Era uma radiografia da Guiné-Bissau, que eu descrevia como uma árvore no inverno, isto é, que perdeu as suas folhas”. “Abós kinkons de vida” criticava o regime enquanto “Cau Tindji” interpelava a população no sentido de trabalhar e não contar unicamente com o Estado para resolver os seus problemas. “Sido” confessa que todos os elementos do grupo acabaram por pedir asilo à França por não se sentirem seguros em Portugal. Também Justino Delgado também foi alvo de alguma pressão devido ao conteúdo de alguns temas como “Djon djon bai luta”.

A 7 de Junho de 1998, a Guiné-Bissau mergulhou num conflito militar de 11 meses entre as forças fiéis ao presidente João Bernardo Vieira e uma Junta Militar dirigida pelo Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, General Ansumane Mané, levando milhares de guineenses a fugirem para o interior do país, Cabo Verde, Senegal e Portugal. Os que decidiram permanecer em Bissau para guardar as suas casas viviam ao ritmo de bombardeamentos e tréguas. Uma canção ficou definitivamente associada àquele período: trata-se de “Si kanua ka nkadja” (Se a canoa não encalhar), do dueto Iva & Ichi. “Cada vez que a rádio da Junta passava esta música, as pessoas sabiam logo que os confrontos e bombardeamentos iam começar e abrigavam-se”, recorda um habitante de Bissau. Iva confessava em 2008 que, volvidos dez anos, o grupo hesitava em interpretar aquela canção pelo facto de despertar más recordações à população. Os horrores desta guerra constam igualmente, entre outras canções, de “Djugudé Fidalgo Obi Francis”, onde o autor Atchutchi recorda como “cães e abutres comiam cadáveres”.

Ao conflito sucederam-se períodos de instabilidade frequentes. As composições passaram a defender a necessidade de diálogo, reconciliação e paz como forma de sarar as feridas, unir os dirigentes e reconstruir o país. As canções possuem letras extremamente duras contra os dirigentes políticos e militares, denunciando o clientelismo, a corrupção, as intrigas, os crimes e sobretudo a injustiça. São canções em que os músicos, desejosos de desempenhar o seu papel social, pedem contas aos dirigentes e apelam à justiça e à boa governação. Um quadro que Zé Manel canta em “Dimocracia na firma”, em que a Guiné-Bissau é associada a uma canoa afundando. O tema apela à união do povo, tal como fez Cabral, para inverter a situação em nome da democracia.

A mensagem de Domingos Mustasse em “Arti na rua” também se enquadra nessa linha, com um apelo à unidade dos guineenses, que, segundo o cantor, são os únicos capazes de reconstruir o país, em vez de contarem com o apoio externo. Nem os géneros mais voltados para consumo nas dicotecas escapam a este fenómeno. No seu popular “Nudade”, Américo Gomes pergunta aos dirigentes “onde vai o país” e apela os conterrâneos ao trabalho em vez de “contar com os europeus”.

A crise que afectou a Guiné-Bissau em Março de 2009, com o duplo assassinato do Presidente da República, João Bernardo Vieira, e do Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, General Tagmé Na Waie, confirmou o envolvimento dos músicos na denúncia dos males que afectam o país. Por exemplo, Eneida Marta, Azi Monteiro e Juca Delgado gravaram “Limárias”, uma canção sublinhando que “a Guiné tem um futuro na base de respeito e diálogo”.

Tal como os géneros tradicionais, a música moderna tem uma componente interventiva social larga e extremamente variada, versando a denúncia de uma prática, a sensibilização ou a promoção de valores. São textos pessoais ou gerais, atentos à evolução da sociedade como em “Sub-17”, do conjunto Tabanka Djazz, em que é abordada a questão do envolvimento de raparigas menores com homens adultos. Já “Fanado Nkana bai”, de Nelson Bomba, do conjunto Furkutunda, denuncia a excisão genital feminina.

Seja qual for o grupo social que se pretende atingir ou a mensagem que se pretende passar, todas estas canções têm um denominador comum: as letras são quase todas em crioulo. José Carlos Schwarz e o Cobiana Djazz tiveram um papel relevante nesse quadro. “Já se cantava em crioulo, mas Zé Carlos passou a utilizar muita metáfora. Foi essa a grande diferença. Os portugueses não percebiam o que ele dizia. Era uma contestação implícita da obra colonial. Só muito tarde é que as autoridades coloniais descobriram o que estava por detrás das letras”, explica Ducko Fernandes, ex-colega de Schwarz nos conjuntos Pérolas Negras e Cobiana Djazz. Na altura, Schwarz considerou que aquela “simples intenção era já, por si só, subversiva para as autoridades coloniais. Só com uma formação moderna, tocar e cantar realidades cotidianas em crioulo, já se enquadrava na resistência cultural”. (22)

A opção pelo crioulo é lógica e pode ser vista como uma tentativa de dar seguimento a um fenómeno nascido durante a luta de libertação em que “a característica veicular (do crioulo) foi reforçada (…)[,] o crioulo tornou-se um elemento de unidade, (…) portador da mensagem política do PAIGC e, mais tarde, (…) detentor sócio-linguístico do conceito de independência”, conforme caracteriza Carlos Lopes. Apostando em canções em crioulo em vez de retomar clássicos de artistas negro-americanos, Schwarz participava assim nesse combate cultural do PAIGC.

Quase toda a discografia moderna guineense é em crioulo, um crioulo que tem evoluído quer na forma quer no fundo. Exceptuando os textos de alguns compositores como Atchutchi, Bari, Iva & Ichi, Kabá, Tchando, Sidó, Kaba Mané ou Zé Manel, o kriol fundo (crioulo vernáculo) e as expressões codificadas são cada vez mais raros. Ao contrário, os textos feitos de frases curtas e simples são uma constante. Mas o resultado é o mesmo: ambas correntes conseguem transmitir a sua mensagem aos melómanos.

V.M.

16) Lopes, Carlos, ob cit., p. 180.
17) Monteiro, Vladimir, Música e caboverdianos em Lisboa (http://caboindex.com/musica/index.php)
18) Augel, Moema Parente, Ora di Kanta Tchiga – José Carlos Schwarz e o Cobiana Djazz, INEP, Bissau, 1997.
19) Augel, Moema Parente, ob. cit., p. 24.
20) Augel, Moema Parente, ob. cit., p. 23 e 213-214.
21) Augel, Moema Parente, ob. cit., p. 193 e 225.

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Comentários

  1. VENSAM IALÁ diz

    20 Julho, 2018 at 22:40

    Excelentíssimas observações.
    Valeria um ótimo trabalho de mestrado.
    Meus parabéns por essas ricas informações.

    Responder

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