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Ser Músico na Guiné-Bissau

24 Junho, 2016 - 11:35 1

Ser músico na Guiné-Bissau

A difusão incessante dos discos de artistas guineenses nas rádios e a alegria como são dançadas as canções de Rui Sangara, Patche di Rima, Américo Gomes ou Tabanka Djaz nas discotecas da capital e das cidades do interior, como Gabú, Bafatá ou Mansoa é mera ilusão. A realidade é bem diferente. Para Sambala Kanuté, “a vida do músico guineense aparenta-se ao quotidiano de uma criança abandonada. Não recebe nenhum apoio que possa ajudá-lo a desenvolver a sua actividade”. Segundo o guitarrista Eliseu, “Djitu ka ten (Não há outra alternativa)”, ou seja, faz-se música sem qualquer expectativa.

Na verdade, falta quase tudo: dinheiro, um mercado estruturado, estúdios e até os equipamentos mais elementares. “Como não há nenhuma loja de música em Bissau, há duas alternativas quando queres substituir uma corda de violão: o fio de um cabo de telefone ou um fio de pesca”, exemplifica Atanásio. Um elemento caracteriza este quadro: o número extremamente baixo de vendedores de CD piratas nas imediações do mercado central da capital, ao contrário do que acontece noutras capitais africanas. O quadro é desolador, com uma indústria musical praticamente inexistente no país, apesar de se estar a verificar alguns sinais positivos desde os finais de 2007.

Os primeiros visados pela situação difícil por que passa o mundo da música são as autoridades do país. “Os políticos apenas precisam de nós na altura das campanhas eleitorais. Eles sabem que sem música, um comício não atrai muita gente. Mas quando chegam ao poder, esquecem-nos imediatamente”, denuncia Dulce Neves. De acordo com Tomás Barbosa, da Associação Nacional de Músicos da Guiné-Bissau, os dirigentes devem “parar de ver o músico como um djidiu, isto é, um artista encarregue de fazer a sua propaganda. O músico deve ser tratado em pé de igualdade com um cientista porque a música também é uma ciência”. O compositor Atchutchi afirma que “hoje, 90% dos políticos utilizam a música em função do seu interesse político imediato”. “A função da música foi desvirtuada”, conclui.

Mas nem sempre foi assim. Tempos houve em que a música da Guiné-Bissau esteve no mó-de-cima, com alguma organização, estruturas montadas e grandes conjuntos. Na sua edição de 31 de Dezembro de 1977, o jornal Nô Pintcha classificava os anos 1970 de “década de explosão cultural na Guiné-Bissau, sobretudo no campo da música”. Na altura, eram numerosos os sinais da aposta nesta arte, destacando-se a criação de infra-estruturas. Por exemplo, Vasco Cabral escreveu num artigo publicado pela revista “Notre Librairie”, que “a criação do Conselho Nacional da Cultura, graças nomeadamente a José Carlos Schwarz, foi essencial na promoção da música guineense após a independência”. Este conselho chegou a editar alguns discos. A Escola Nacional de Música da Guiné-Bissau José Carlos Schwarz constituiu outro investimento musical do Estado. Ela nasceu ao abrigo do Decreto Presidencial 2/80, mas, na verdade, abriu as portas em 1979. “Inicialmente, a inauguração estava prevista para 6 de Dezembro, data do nascimento de Schwarz. Mas devido a atrasos, acabou por acontecer no dia 12”, recorda o músico João Cornélio, antigo aluno e mais tarde professor e director daquele estabelecimento de ensino. O primeiro responsável (e um dos seus fundadores) foi Augusto Reis Pereira “Patchu”, pianista que já ensinava música no Ensino Secundário. Foi graças a ele que as primeiras aulas passaram a ser asseguradas por professores portugueses. “Eram dez e vieram no quadro da cooperação para apoiar a Banda de Música Militar. Como os membros da banda tinham algumas limitações em termos musicais, os docentes portugueses passaram a dar aulas na escola, nomeadamente guitarra, piano, clarinete, saxofone, acórdeão e educação musical.” As aulas eram gratuitas. A média de alunos no começo oscilava entre 180 e 200, admitidos após um teste de aptidão porque quase todos queriam tomar aulas de guitarra.

Deste lote, destacaram-se seis que, em 1982, seriam contemplados com uma bolsa de estudo pela Fundação Calouste Gulbenkian para prosseguir a sua formação musical em Lisboa: Inês Trimó (canto e piano), Zé Manel Fortes (canto e piano), Juca Delgado (piano, clarinete e violoncelo), Francisco Sanhá (trompete e contrabaixo), Zé Carlos Ribeiro (guitarra e violino) e João Cornélio (solfejo, história da música, clarinete e saxofone). Zé Manel lembra a sua passagem pela escola : “Estive lá um ano, aprendi o solfejo e a música de base. Acredito que um músico nato não precisa de ir à escola e temos muitos exemplos como a Cesária Evora e o Mozart. Mas devo confessar que a escola abriu-me novos horizontes em termos de composição e análise da música, bem como a facilidade de comunicação com outros músicos.” Por seu turno, Juca recorda a sua curiosidade e interesse pelos instrumentos: “Depois de ter aprendido a tocar piano, fui descobrindo o xilofone, a flauta transversal, o clarinete e o saxo. Ao fim do primeiro ano, eu e todos aqueles que tinham melhores habilitações começámos a ensinar as crianças.”

O objectivo da ida a Lisboa dos seis estudantes era propicionar-lhes mais formação, devendo depois regressarem a Bissau como professores da Escola Nacional de Música. A primeira fase da formação decorreu normalmente, mas a suspensão das bolsas de estudo pela Fundação Gulbenkian, após os acontecimentos de 6 de Outubro de 1986 (alegada conspiração contra o então Presidente da República Nino Vieira), acabou por inviabilizar o projecto.

João Cornélio regressou naquele ano a Bissau e à escola onde as aulas passaram doravante a ser ministradas por sete professores cubanos (no âmbito da cooperação entre os dois países) e duas professoras romenas. “Estes professores permaneceram entre três e quatro anos no estabelecimento. Davam aulas de música, mas também de dança contemporânea e artes plásticas. Foi nessa altura que a escola passou a chamar-se Instituto Nacional das Artes.” A partir de 1995, o ensino passou a ser totalmente assegurado por professores guineenses, nomeadamente por alguns elementos da Banda Militar, entretanto formados em Dakar. Alguns músicos, como o tocador de kora Braima Galissa, também faziam parte dos formadores.

Apesar de alguns problemas, como a questão da equivalência dos diplomas pelo Ministério da Educação, a escola funcionou normalmente até Junho de 1998. Norton Baptista foi um dos seus últimos estudantes – e o último pianista. Com o início do conflito armado, o instituto passou a servir de abrigo a tropas, tendo a maior parte dos seus instrumentos sido destruída ou pilhada. Do espólio da instituição restam apenas cinco pianos, cuja recuperação insere-se num projecto de criação de uma nova escola de música no país.

A formação deixou de ser institucional, passando a ser assegurada por algumas individualidades conhecidas, como o guitarrista Fernando Fafé ou desconhecidos como Talnate N’Dumi, que chegou a iniciar alguns jovens à guitarra. “Era uma forma que encontrei para transmitir os conhecimentos musicais que adquiri em São Petersburgo, na Rússia. Dava aulas em casa, no Bairro de Ajuda, em Bissau. Comecei com 26 jovens, mas a maioria desistiu. Cada aula custava 500 francos CFA, destinadas ao sustento da escola, nomeadamente à compra de cordas para os violões, etc. Como as pessoas não têm dinheiro, a maioria não pagava.” Por seu turno, Fafé justifica a sua decisão pelo facto da “terra não ter meios para formar os jovens”.

A falta de instrumentos também dificulta a aprendizagem mas houve quem conseguisse ultrapassar os obstáculos. “Comecei a aprender com um amigo, mas quando começou a lavoura, ele regressou ao campo. Sem guitarra, desenhei a escala numa tábua e foi com esta espécie de braço de guitarra que fui praticando. Em 1997, já com alguns conhecimentos, participei num festival na zona de Bandim, em Bissau.” Hoje, Eliseu é membro do Furkutunda e um dos bons guitarristas do país.

O período de ouro da música guineense deveu-se igualmente ao facto de, após a indepêndencia do país, os governantes terem feito dela uma espécie de cartão de visita, aquando de visitas de delegações estrangeiras e durante os festivais no estrangeiro, mas também um motor de unidade e desenvolvimento. Zé Manel nota que “depois de ter desempenhado um papel na mobilização das massas durante a luta pela independência, ela veio a funcionar como factor de reconstrução. Pelo menos, foi assim que o regime do presidente Luís Cabral utilizou a cultura”. Segundo o jornalista Muniro Conté, nos primeiros cinco anos da proclamação do Estado da Guiné-Bissau, “a cultura foi eleita como forma eloquente de exprimir a independência, a soberania e o hábito hospitaleiro guineenses. Na recepção às delegações estrangeiras, a música nunca faltava”. Este ambiente bastante favorável vai favorecer o aparecimento de vários conjuntos.

Na altura, a música tinha palcos próprios – as sedes da UDIB, do Benfica e do Sporting – onde eram organizados saraus muito concorridos e animados por conjuntos guineenses como Pérolas Negras, Cobiana Djazz ou Super Mama Djombo e estrangeiros como o conjunto Voz de Cabo Verde. Segundo Ducko, antigo guitarrista do Pérolas Negras e do Cobiana Djazz, “eram sobretudo festas familiares para as quais se convidavam artistas para tocar”. A Praça dos Heróis Nacionais (antiga Praça do Império) também acolheu concertos de grupos musicais guineenses e do estrangeiro, como Bembeya Jazz, Kelé Tegui, Horoya Band e Amazones, todos da Guiné Conacri, Kissaguela, de Angola, Myriam Makeba, da África do Sul e a Orquestra Aragon, de Cuba.

A partir de meados dos anos 1970, começaram a ser organizados festivais de música (Festival contra o SIDA, Festival do Comércio Livre, Festival do jornal Nô Pintcha, etc.). Um dos primeiros foi dedicado à memória de Schwarz, tendo reunido em Bissau músicos de todas as regiões que tinham necessariamente de interpretar o tema “M’na nega bedjo”, do malogrado artista.

Os festivais assim como os concursos de vozes vão constituir para muitos um passaporte para o mundo artístico. Em 1978, por ocasião da segunda edição do Festival dos Conjuntos, o público guineense descobria um jovem de 11 anos chamado Manecas Costa, no agrupamento África. Hoje, é uma referência musical do país. Já o Festival do Jornal Nô Pintcha de 1987, no Estádio Lino Correia, permitiu a Rui Sangara actuar pela primeira vez em público. A confirmação do seu talento viria um ano mais tarde com o segundo lugar no concurso Descoberta, atrás do seu irmão, o cantor Atanásio. “O prémio deu-me mais coragem para continuar”, recorda Rui, que, além de ter recebido 150 mil pesos, foi convidado por Justino Delgado para fazer parte do conjunto Docolma. O nascimento do Furkutunda também está ligado à participação num festival realizado em 2001.

O surgimento dos festivais vai conduzir, a partir dos anos 1980, a uma viragem na música guineense, até então marcada pela proeminência dos conjuntos em detrimento das individualidades. “Assistiu-se, por um lado, à passagem de uma carreira em grupo para uma carreira individual e, por outro, ao despontar de novos valores”, nota Muniro Conté, exemplificando com Justino Delgado, na altura autor de alguns trabalhos em cassetes e vencedor de dois festivais em 1983 e 1984. “Em 1987, a epopeia da carreira individual ganhou definitivamente expressão, com a realização de três festivais: o primeiro em homenagem a Zé Carlos, ganho por Manecas Costa; o segundo, conquistado por Maio Cooperante e organizado por ocasião do 12° Aniversário do Jornal Nô Pintcha, e o terceiro promovido no quadro da sensibilização sobre o SIDA e conquistado por Buca Pussik”, acrescenta Conté.

Em meados dos anos 1980, a música chegou a ser objecto de vários estudos, nomeadamente no quadro de projectos sob a tutela do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) e da Direcção-Geral da Cultura (DGC). Num artigo entitulado“ Estudos e pesquisas sobre a música tradicional” (Soronda N° 2, Junho 1986), os autores Djibril Baldé, Serifo Mané e Graça Santos apontavam alguns dos projectos de pesquisa existentes: “O papel da música durante a luta de libertação, o estudo de interpenetração étnico-musical Beafada–Mandinga, a origem do instrumento Kora e sua relação com o império de Gabú, os instrumentos e as músicas dos Fulas do Gabú e a análise das incidências das músicas mandingas do Mali e dos Fulas do Futa-Djalon sobre as músicas e instrumentos actuais dos fulas e mandingas.”

Um dos últimos investimentos públicos de realce prendeu-se com a inauguração de um estúdio de gravação em Bissau, no início dos anos 1990, graças a um fundo canadiano. Até à proclamação da independência em 1973, as obras musicais eram gravadas em fitas magnéticas. Os músicos desejosos de gravar um disco eram obrigados a deslocar-se a Portugal. O estúdio fazia parte do Centro de Documentação da Música e Dança e funcionava nas instalações do Ministério da Cultura. O antigo produtor Guilherme Sá Filipe chegou a utilizá-lo para gravar artistas como Patcheco di Gumbé, Rei David, Malamba Cissé e Tino Trimó.

A partir da segunda metade dos anos 1990, a situação começou a piorar, levando os músicos a procurar alternativas. A primeira medida foi tomada entre 1994 e 1995: Paulo Sambú mobiliza alguns colegas, entre os quais João Cornélio, e é criada a Associação Nacional de Músicos da Guiné-Bissau. Conforme rezam os seus estatutos, a associação pretende preservar e difundir a música tradicional, promover a música em geral, divulgar a cultura guineense e congregar músicos de várias gerações. Se a associação tem conseguido aproximar os músicos, ela tem ainda pela frente o desafio da melhoria do panorama musical guineense, algo que, segundo a sua direcção, ainda não materializou “devido à instabilidade política no país”.

A segunda iniciativa ocorreu em Fevereiro de 1996, em Bissau, com o nascimento da Sociedade Guineense de Autores (SGA). A fundação da SGA aconteceu oito anos depois da Guiné-Bissau ter assinado a Convenção de Berna para a protecção das obras literárias, artísticas e científicas (1988), documento publicado no Boletim Oficial de 18 de Abril de 1991. “Penso que a criação da corporação foi um dos maiores acontecimentos desde a independência. É uma medida que mexe com tudo e todos, ao fazer valer os direitos de autor e o respectivo pagamento desses direitos”, explica Guilherme Sá Filipe. A ideia de criar esta estrutura nasceu depois deste produtor se ter deslocado a Bissau para promover o álbum “Nkonsola”, de Rui Sangara, entre 1992 e 1993. O prejuízo financeiro dessa operação fortaleceu-o nas suas convicções quanto à necessidade de proteger os artistas.

Os primeiros passos da SGA não foram fáceis. “Tivemos desentendimentos com alguns advogados que defendiam os bares, os restaurantes e as discotecas. A Ordem dos Advogados até se posicionou do lado dessas casas. Houve troca de cartas e discussões e eles acabaram por admitir que a SGA actuava de forma legítima”, precisa Sá Filipe. As coisas também não foram fáceis com os próprios músicos que “exigiam o pagamento dos seus direitos nos primeiros meses da sociedade, sem lhe dar o tempo de funcionar em pleno”. “Quando se cria uma estrutura deste tipo, deve haver um período em que ela procura vincar. No nosso caso, até 50% das receitas serviam para fazer funcionar a SGA, nomeadamente as despesas administrativas”, acrescenta.

Apesar de tudo, a SGA tinha conseguido fazer passar a sua mensagem junto dos principais interessados. Entre 1996 e 1998, algumas discotecas teriam assinado um contrato com a sociedade e algumas delas, nomeadamente a Capital, a Galáxia e a Bambu, já pagavam os direitos de autor. No plano exterior, a experiência guineense não passou despercebida e os dirigentes da organização foram convidados a formar técnicos da futura congénere moçambicana durante um atelier realizado em Lisboa. Mas em 1998, o país mergulhou num conflito militar e, à semelhanca da Associação Nacional de Músicos da Guiné-Bissau, a SGA viu paralizadas as suas actividades.

Os direitos de autor continuam a não ser respeitados, apesar da Constituição guineense consagrá-los no seu artigo 50.°, ponto 3, afirmando que “a lei protegerá o direito de autor”. “Uma das minhas canções – “Interessanti” – foi utilizada durante vários meses na publicidade de um supermercado da capital sem qualquer retorno”, denuncia Rui Sangara, doravante inscrito na Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), tal como o seu compatriota Atchutchi, membro da corporação portuguesa desde os anos 1970, e muitos outros artistas guineenses.

Foi também com o intuito de mudar as coisas que nasceu o espaço Mansaflema, corria o ano de 1995. Por detrás desta iniciativa estiveram dois guineenses, entre os quais o saxofonista Miguelinho Nsimba, um holandês e uma belga. “Na altura, havia locais de espectáculo em Bissau como as sedes da UDIB, do Benfica e do Sporting, mas eu queria algo diferente, algo mais popular. Além disso, havia um problema: muitas vezes, os donos das salas costumavam reter os instrumentos dos músicos quando estes não conseguiam pagar o aluguer do espaço”, recorda Miguelinho. O grupo adquire um espaço chamado Cansalá, no bairro de Pilon di Riba, que reabilitam e baptizam de Mansaflema. A programação da nova sala incluía música tradicional às terças e quintas-feiras e música moderna às sextas e sábados. “Além do espaço, o artista dispunha de instrumentos e tinha direito à publicidade antes dos espectáculos.” As portas do Mansaflema continuam abertas e a receber músicos nacionais, em particular os estreantes. Por exemplo, foi no Mansaflema onde o Guiné Livre, conjunto fundado por Talnate, deu o seu primeiro espectáculo, em Abril de 2007. Em 2010, o espaço fechou as portas e o edifício completamente arrasado.

O estúdio do Centro Juvenil “Jovens para Cristo” da Igreja Evangélica, na Zona 7, em Bissau, também faz parte das iniciativas individuais em prol da música. Nasceu em 2003, graças a um cidadão norte-americano, conforme recorda o guitarrista Eliseu. “Ele tocava e eu também. Discutíamos bastante. Um dia, perguntou o que poderia fazer para ajudar os jovens guineenses em termos musicais. Respondi-lhe que um estúdio seria uma grande ajuda. Depois de uma passagem pelos Estados Unidos, trouxe um registrador de marca Rolland”. Alguns meses depois, o estúdio começou a gravar os primeiros artistas, com Eliseu a assegurar a produção. “Facturava-se 19 mil francos quatro horas de estúdio, mas houve muitos músicos que foram gravados a custo zero, nomeadamente alguns da nova geração”, lembra Eliseu. Entre os artistas que utilizaram este estúdio, figuram alguns grandes nomes como Justino Delgado, Sambala Kanuté, Rui Sangara, Atanásio, Eneida Marta, Patche di Rima e o conjunto Furkutunda.

Alguns artistas continuam a trabalhar com estúdios no estrangeiro: “Kontela 2008”, de Sambala Kanuté, “Djunta mom”, o álbum de estreia de Furkutunda e “Vida ê assim”, de Rui Sangara, foram gravados em Dakar. Por seu turno, Antão Martins escolheu o estúdio do cabo-verdiano Kim Alves, na Praia, para gravar o seu álbum de estreia, “Homi Nobu”. “Se queres um álbum com boa qualidade de som, tens que viajar até Dakar ou Europa”, nota Binham. A inauguração, em 2010, por Zé Manel, de um estúdio em Bissau, aparece como uma tentativa de melhorar as condições de trabalho dos músicos.

As dificuldades da Guiné-Bissau (um dos países mais pobres do planeta, ocupando o 175.° lugar entre 177 países, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano 2007 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) acabam por ter reflexos sobre a cultura. Apesar de Zé Manel considerar que a pobreza do país não deveria ser justificação, identificando “países bastante pobres onde os artistas conseguem viver da sua arte”, a verdade é que não se pode falar de um mercado musical na Guiné-Bissau.

As vendas de discos, por exemplo, são pouco significativas e o preço do CD – que custa, em média, 10 mil francos CFA, quando o salário médio oscila entre os 20 e 30 mil francos CFA – não é estranho a esta realidade. “Entre 1996 e 2001, a música guineense era muito consumida no país. Os estrangeiros queriam sempre levar uma lembrança e procuravam música guineense. Mas depois surgiram as dificuldades financeiras e as vendas internas caíram em 80%”, explica Alfredinho, fundador e dono da Casa da Música. DJ durante 20 anos em discotecas da capital, como Kora Club, Tropicana e Tabanka, Alfredinho decidiu, em 1996, preencher a lacuna face “às solicitações para gravar cassetes”. “Fui a Lisboa, falei com os responsáveis de Sons d’Africa, Sonovox e Balafon. Os álbuns ‘Po di buli’, de Sangara e ‘Pura sedução’, do angolano Don Kikas, foram as primeiras remessas que recebi.” Produtor de artistas como Ianu Saluqui, Pacheco di Gumbé ou Carlos Delgado, Alfredinho preparava-se para abrir um estúdio na capital, mas o conflito de 7 de Junho de 1988 inviabilizou o projecto. A Casa da Música continua aberta e a vender CDs, mas a sua principal actividade é o aluguer do equipamento de som para espectáculos musicais, comícios políticos e conferências.

As sedes da UDIB, do Sporting e do Benfica, outrora passagens obrigatórias dos conjuntos em Bissau, encerraram as suas portas à música. Hoje, os palcos de espectáculos são os centros culturais português, franco-guineense e brasileiro e sobretudo o espaço Lenox, sito na avenida dos Combatentes da Liberdade da Pátria (ex-14 de Novembro), que liga a cidade ao aeroporto de Bissau. A música ao vivo nos bares e restaurantes está ainda limitada a um número reduzido de espaços. A empresária Sassi foi uma das promotoras deste tipo de animação, no restaurante Jordani, corria o ano de 2005: “Bissau estava morto e as alternativas eram poucas. Passei a convidar músicos como Justino Delgado, Chico Barreto, Karyna que animavam os clientes até à 01h00.” Nasciam assim as “quintas-feiras da Sassi”. Em 2010, apenas os restaurantes Tamar e Calyste serviam música ao vivo com alguma regularidade.

Embora o seu número tenha aumentado a partir de meados de 2007, os músicos consideram que os espectáculos no país não são suficientes para garantir um rendimento regular. Outros lamentam o montante dos cachets recebidos. “Tudo depende do tipo de espectáculo. No nosso caso, nunca ultrapassa os 50 mil francos, a dividir entre os membros do grupo”, precisa Norton. Por sua vez, Dulce Neves considera os montantes bastante baixos em comparação com Dakar: “Aqui pagam-te 150 mil francos que tens de dividir com os teus músicos. No Senegal, o cachet atinge os 600 mil francos”. Se alguns músicos – são raros – recebem 200 mil francos por espectáculo, a verdade é que a maioria ganha pouco (20.000 a 50.000 francos), o que impossibilita qualquer tipo de investimento.

Apesar dos membros do Furkutunda afirmarem guardar parte dos cachets para um dia poderem ter um estúdio próprio, quase todos aqueles que residem no país consideram impossível financiar seja o que for enquanto a música não sustentar o músico. “O sintetizador que utilizo nos espectáculos pertence ao colega Antão Martins. Vai levar muito tempo até eu poder comprar o meu”, explica Norton. Talnate acrescenta que “geralmente, o dono da sala de espectáculos guarda a maior percentagem e o que te resta deve servir para pagar o transporte dos instrumentos e os membros do grupo”.

A publicidade e a participação em campanhas de sensibilização sobre determinadas causas sociais têm proporcionado algumas alternativas: Sambala Kanuté e Rui Sangara foram rostos da campanha de publicidade de uma empresa de telecomunicações em 2007 enquanto que Dulce Neves participou numa campanha contra a SIDA. São, no entanto, as campanhas eleitorais que proporcionam os maiores ganhos aos músicos, e quase todos, desde os grandes nomes –Justino Delgado, Iva & Ichi, Rui Sangara, Kaba Mané, etc.- à nova geração –Patche di Rima-, são solicitados pelos partidos políticos. A receita do estúdio do Centro Juvenil “Jovens para Cristo” por ocasião das legislativas de 2004 é bastante elucidativa. “Ultrapassámos o milhão de francos quando em média conseguíamos aproximadamente 300 mil francos por mês”, lembra Eliseu. Por ocasião da campanha eleitoral para as presidenciais antecipadas de 28 de Junho de 2009, os vendedores ambulantes reuniram num único CD, cerca de 13 canções da autoria de músicos guineenses em honra do candidato Malam Bacai Sanhá, ou seja o suficiente para realizar um CD .

Porém, estas actividades são raras, pouco remuneradoras e nem sempre se traduzem num patrocínio prolongado. “Devia deslocar-me a África do Sul, por ocasião da entrega dos prémios Kora. Solicitei o apoio de empresas e instituições nacionais para custear a viagem mas nada consegui”, nota Atánasio. Além disso, participar na campanha de um partido pode deixar marcas. Numa entrevista ao Nô Pintcha, por ocasião da saída de “Mundo rabida”, Dulce Neves realçava este risco mas deixava claro que “se estás com fome tens que ir”. Luís, do conjunto Furkutunda, partilha a opinião da embaixadora da música guineense : “Não é nosso desejo participar nas campanhas dos partidos. Por isso, procuramos os privados, mas o que fazer quando há falta de apoios ?”.

Que alternativas? Emigrar? Dulce não é a favor de um êxodo geral : “Não podemos sair todos. Tens que viver a realidade do país para poderes criar”. Para a cantora e os restantes artistas, a solução passa por um esforço do Estado, nomeadamente através da criação de um fundo cultural previsto pelo Orçamento Geral do Estado e sobretudo o seu reconhecimento. “A cultura é o alicerce de um país”, salienta Zé Manel, precisando que a aposta na cultura acabará por contribuir para o desenvolvimento da Guiné-Bissau.

V.M.

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Comentários

  1. Rosina Ramos diz

    1 Abril, 2018 at 17:13

    Exmos Srs

    Vai haver uma conferência sobre direitos de autor em Portugal dia 13-04-2018 no CCB em Lisboa de entrada livre e gostaríamos muito se puderem perguntar que questões têm o Sr Guilherme Sá Filipe e outras personalidades ligadas à defesa dos direitos de autor na Guinè Bissau que o seu amigo Celestino Monteiro Macedo os representará e colocará tais questões. Agradeço a divulgação do meu e-mail entre os interessados com urgência.

    Muito Grata pelo vosso artigo e até mais

    Responder

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