O gumbé é, sem dúvida, o género que identifica a Guiné-Bissau em termos musicais, tal como Angola e o seu semba, Cabo Verde e a morna ou Moçambique e a marrabenta. O gumbé está associado a Cacheu, Geba e Bissau, as primeiras zonas urbanizadas e europeizadas do território guineense. São historicamente antigas praças-fortes, entrepostos comerciais criados durante a colonização portuguesa, daí serem locais privilegiados da confluência de diferentes povos e etnias. Cacheu era “a fonte principal do comércio de Cabo Verde, na terra firme da Guiné, onde os navios portugueses vinham obter escravos e produtos da região”, segundo Veríssimo Serrão, em “História de Portugal”, Volume V, que acrescenta que “o régulo Bocampolco permitira em 1692 a fundação de uma capitania em Bissau, cujo terreno foi comprado em 1698 com a autorização do novo régulo Incinhate”.

La Musique Africaine Contemporaine – Wolfgang Bender
O nascimento do gumbé nas zonas urbanas e costeiras não é um fenómeno exclusivo à Guiné-Bissau. Na sua obra “La Musique Africaine Contemporaine”, Wolfgang Bender dá conta do aparecimento de alguns estilos europeizados na costa oeste africana em finais do século XIX: “Le nombre croissant de fonctionnaires européens et africains qui participaient notamment à la construction du chemin de fer ainsi que, d’une manière générale, les nouveaux modes de vie et de travail contribuèrent à la naissance de nouvelles formes de distraction. On vit apparaître de nouvelles danses et de nouvelles musiques dans les régions cotières. Elles tournaient le dos à la musique traditionelle mais utilisaient au début surtout des instruments traditionnels comme la timbale ou les cloches et différentes sortes de lamellophones. On y ajouta les instruments des matelots, à commencer par la guitare qui fut popularisée par les matelots libériens de l’etnhie Kru. Ces derniers longeaient toute la côte et firent partout connaître le nouvel idiome musical. Il en résulta un style presque commun à toute la côte ouest-africaine qui trouva ensuite ses variantes locales. Ce style s’imposa aussi grâce à l’habitude des gouverneurs et des sociétés commerciales de faire travailler les ouvriers d’un territoire dans un autre. On en trouve un exemple dans le gombe du peuple Gâ du Ghana actuel.” (12) O autor escreve que este gumbé bem como o osibisa teriam precedido o high-life, nascido na Costa de Ouro (Gana) nos anos 1920 e um dos principais estilos musicais do Gana actual.
Se o projecto Dromas tivesse sido levado a cabo até ao fim, ter-se-ia provavelmente uma ideia mais clara acerca do gumbé guineense. O projecto lançado em 1987 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) tinha como finalidade estudar esta música urbana e semi-urbana, nomeadamente através da recolha de dados sobre os instrumentos utilizados na sua execução e o estudo da melodia, com vista à determinação dos denominadores comuns das suas variantes. Tal não aconteceu e a origem desta música continua a ser objecto de várias teses.
Algumas delas são próximas da teoria do autor de “La Musique Africaine Contemporaine”, reforçando a ideia de que o gumbé teria surgido deste encontro de povos diferentes num ambiente dominado pelas festas depois de um dia de trabalho. Entre os defensores da tese da origem oeste africana e em particular da serra-leonesa, encontra-se o músico e compositor Atchutchi. “Originalmente, ele vem da Serra Leoa mas vai passar por várias evoluções. Desenvolveu-se muito em Nhala, localidade que esteve ligada ao litoral, entre Quínara e Bolama. Foi um estilo musical que passou pela Guiné, Cabo Verde, Saint-Louis, no Senegal e Freetown, na Serra Leoa”, afirma Atchutchi.
A britânica Lucy Duran, professora das cadeiras de Música Africana e Música no Mundo Cultural Mandé na Escola de Estudos Orientais e Africanos, Universidade de Londres, também considera o gumbé um género oeste-africano. Produtora de algumas figuras da música africana, entre as quais o guineense Manecas Costa (o álbum “Paraíso di Gumbé”), Lucy é da opinião que o gumbé foi a “primeira música popular africana”, mas hoje quase em extinção em outros países do continente, com excepção da Guiné-Bissau.
Uma tese que não partilha João Cornélio, antigo director da Escola Nacional de Música José Carlos Schwarz: “Ninguém me convence que o gumbé vem da Serra Leoa, do Mali ou de outras partes. Não é verdade que o que se toca na Serra Leoa ou no Mali é o gumbé que tocamos aqui. Não temos a mesma célula rítmica. O instrumento musical também não é o mesmo: temos o sikó, a percussão que determina o seu ritmo. Sou defensor de que o nosso gumbé é característico. Nem sei se na Serra Leoa ou no Mali se chama gumbé. No nosso país, trata-se de um estilo urbano e semi-urbano das mandjuandadi.” Os defensores de um gumbé característico apontam o facto de ele fazer parte do repertório das mandjaundadi, forma musical cultivada pela maioria das etnias guineenses.
Existem igualmente as pistas latino-americana e portuguesa avançadas por alguns músicos guineenses. Ramiro Naka estima que o gumbé vem do fado, um ritmo que evoluiu em África e assumiu várias formas como a coladera, a atcha, a singa e o kumboi. Já o compositor Bedinte destaca a influência da música da América Latina, durante a época colonial, em particular nos anos 1960/1970. “Havia o minguito, ritmo de Santo Domingo, o estilo batchatcha e o merengue. Possivelmente, o gumbé vem da cumbia. O tambor básico do gumbé é o mesmo da cumbia. Com a chegada dessa música da América Latina, misturou-se com a música tradicional. A fusão poderá ter estado na origem deste gumbé urbano.”
Uma das certezas em relação ao gumbé prende-se com o uso do crioulo nas canções, sendo considerado o estilo musical das camadas populacionais crioulas. Uma ligação em nada surpreendente visto que o crioulo também teria nascido nas zonas urbanas, nomeadamente em Geba e Cacheu. Na sua obra “Para uma leitura sociológica da Guiné-Bissau”, Carlos Lopes nota ser “vulgar afirmar-se que o crioulo da Guiné-Bissau teria surgido de Cacheu ou de Geba (os primeiros pontos de fixação e de comércio portugueses), vindo a ser mais tarde expandido por Bolama (antigamente conhecida por Bambaia) e outros pontos do país. Naturalmente, não dispomos ainda de elementos comprovativos de cada uma dessas teses, mas certas particularidades nos levam a adiantar que teria sido Cacheu um dos possíveis berços do património linguístico que é o crioulo. Isto, se recordarmos ter sido o primeiro centro de movimentações comerciais com o exterior, nos primeiros anos de ocupação colonial e um dos primeiros portos de tráfico de escravos para as Américas e a Europa. Cabo Verde era a ponte naval de ligação, onde eram guardados os escravos. É ilustrativa a passagem do historial que acima fizemos, segundo o qual o capitão-mor enviado para Cacheu, em 1600, tinha na sua companhia de infantaria escravos e gentes por ele contratados em Santiago. Assim, a origem poderá ter sido cabo-verdiana sendo, no decorrer dos tempos, cada vez mais enriquecido com expressões autóctones extraídas das línguas da Guiné, o que justifica a sua disparidade em relação ao crioulo de Cabo Verde, nos nossos dias”. (13)
Porém, sendo a miscigenação inter-étnica ou inter-racial uma característica das famílias da sociedade crioula, o gumbé não podia ser uma forma de expressão musical exclusivamente crioula. Antes pelo contrário, conforme escrevem Catarina Saraiva e Pedro Crisóstomo na sua monografia “Netos do N’Gumbé: os sons da tradição”: “Existem duas abordagens conceptuais em relação ao Gumbé. A primeira diz respeito à correspondência étnica das variáveis, a segunda, pelo contrário, mostra-nos o cruzamento dos dados etnográficos, ou ainda a dificuldade de por vezes se estabelecer uma atribuição étnica específica. Ou seja, por um lado temos a preservação e correspondência dos elementos que podem ora estar associados a uma expressão étnica, ora fazerem parte do processo de crioulização. O primeiro elemento que caracteriza o Gumbé é precisamente o crioulo como veículo linguístico privilegiado, que é utilizado com maior frequência que as restantes línguas. A prová-lo estão algumas expressões pontuais nas línguas étnicas que são integradas nos textos em crioulo.” Também a professora Lucy Duran nota que é “a forma através da qual as várias etnias da Guiné-Bissau, inclusive as de tradição muçulmana (Mandinga, Fula etc), [se] cruzam (…) culturalmente, sobretudo com a contribuição dos djális ou griots, lavradores que se tornaram músicos hereditários”. (14)
A outra certeza em relação ao gumbé prende-se com dois instrumentos que lhe dão o mote rítmico, isto é, o sikó e a tina ou tambor de água. Com o tempo, juntaram-se-lhes a guitarra tocada com dois dedos e idiofones africanos. O seu ritmo melódico consiste sucessivamente “numa colcheia com ponto de aumentação, uma semi-colcheia, duas colcheias e uma semínima”, segundo o professor João Cornélio.
O músico Iva diz que nele existem diferentes padrões rítmicos que sobressaem progressivamente: o kumboi, em língua mandinga, o kussundé, em língua balanta (que significa também instrumento de percussão), o poulé, em língua pepel e o dancé, em língua mancanhe. “A construção de todo o processo musical do Gumbé dá-se através da sobreposição dos diferentes ritmos – quer sejam realizados pela combinação dos diferentes instrumentos de percussão quer ainda do uso das palmas e apitos, utilizados juntamente com a voz”, notam os portugueses Saraiva e Crisóstomo, que acrescentam que “podemos associar os padrões rítmicos às diferentes etnias que tomam parte no estilo de gumbé”. (15) O estilo é predominantemente vocal em que a organização formal das peças musicais caracteriza-se por uma estrutura de repetição de frases com uma parte introdutória e coros.
O gumbé teria sido, em tempos, um “ritmo católico”, quando os crentes acompanhavam o padre com sikó e tina, numa autêntica articulação entre uma prática musical e um culto religioso. Os anos 1960/inícios de 1970 foram marcados pela sua valorização graças ao PAIGC, na sua tentativa de promover tudo o que constituía a identidade do guineense. Apesar de algum conteúdo nacionalista antes da independência e da contestação política, assim como depois de 1973, o gumbé assemelha-se a uma música ligada ao prazer, à semelhança da coladera em Cabo Verde, com a qual partilha a ironia crioula. Ambas são autênticas crónicas sociais.
A chegada ao país de instrumentos eléctricos, nos finais dos anos 1960, vai conduzir à sua primeira evolução com a introdução da guitarra eléctrica. Um encontro com o músico e compositor cabo-verdiano Paulino Vieira, em Lisboa, nos anos 1980, permite-lhe dar um novo passo, segundo o guitarrista Bedinte. “Paulino produziu ‘Casamenti d’aos’. Foi um disco muito mais moderno. Houve poucas coisas tradicionais. Ele ajudou-nos a modernizar a música que Justino Delgado tinha levado a Lisboa. Até então, não se utilizava o piano (sintetizador). Foi ele quem introduziu o piano na nossa música pela primeira vez. É um disco de referência. A partir daí adoptou-se o estilo de tocar gumbé. O gumbé tornou-se assim uma balada tina, rumba latino-americana”, explica Bedinte.
O Justino Delgado mas também Rui Sangara e o conjunto Tabanka Djazz são os principais rostos deste género que vem igualmente absorvendo ritmos de outros países como o zouk das Antilhas, o soukouss dos Camarões ou o decalé-coupé da Cote d’Ivoire, graças a nomes como Roger, Patche di Rima, Djipsom, Domingos Mustasse e Américo Gomes, entre outros.
V.M.
Notas de rodapé
12) Bender, Wolfgang, La musique africaine contemporaine, L’Harmattan, Paris, 1992, p. 98-99
13) Lopes, Carlos, Para uma leitura sociológica da Guiné-Bissau,. INEP, Lisboa Bissau, 1988, p. 238.
14) Saraiva, Catarina e Crisóstomo, Pedro, Netos do N’Gumbé: Os Sons da Tradição (Etnomusicologia 4: Pesquisa de Campo), Universidade Nova de Lisboa, 1999/2000, p. 25.
15) Saraiva, Catarina e Crisóstomo, Pedro, ob. cit. p. 19.
Boas senhor, espero que se encontre em ótimas condições de saúde Eu gosta dessa pagina que se aborda mais ou menos o que é o estilo Gumbé como um estilo que representa a Guiné-Bissau.
Mas só queria saber se quando se fala do Gumbé na Guiné-Bissau, quem foi Patcheco De Gumbé nesse estilo musical guineense?.
Boas senhor/a, espero que se encontre em ótimas condições de saúde Eu gostei dessa pagina que se aborda mais ou menos o que é o estilo Gumbé e como esse estilo surgiu na Guiné-Bissau. Por outro lado, fiquei satisfeito com esses discursos feitos por alguns conhecedores da matéria dessa área.
Mas em fim, eu só queria saber se quando se fala de Gumbé na Guiné-Bissau, quem foi Patcheco De Gumbé nesse estilo musical guineense? podíamos inserir-lhe nesse contexto ou não?