O papel da rádio
Visto o espaço que a música guineense ocupa nas grelhas das rádios do país, os músicos até podiam ganhar algum dinheiro. Não é o caso. Apesar de passadas vezes sem conta pelos animadores das estações radiofónicas, a difusão das canções não lhes garante um único franco CFA, a moeda nacional. A Sociedade Guineense de Autores (SGA) bem tentou mudar o quadro logo após a sua criação em meados dos anos 1990 mas sem sucesso. “Chegámos a enviar uma correspondência nesse sentido mas nem a Rádiodifusão Nacional nem a televisão se dignaram responder”, recorda o seu fundador, Guilherme Sá Filipe. As rádios alegam a insuficiência de meios financeiros.
Mas, exceptuando este aspecto, a rádio quase sempre esteve do lado da música e dos músicos, quer funcionando como estúdio de gravação quer promovendo e divulgando as composições dos músicos. Foi na então Emissora Nacional onde pela primeira vez foram difundidas canções nacionalistas guineenses. Cancan, um dos protagonistas deste feito, era militar no exército português e animava um programa radiofónico diário destinado a juntar os guineenses à volta do projecto “Guiné melhor”, uma estratégia lançada pela antiga metrópole para esfriar os ânimos de independência e soberania reclamados por Amílcar Cabral. Mas durante um ensaio do Cobiana Djazz, gravou quatro temas do conjunto –“Mindjeris di panu pretu”, “Nho ratu”, “Estin” e “Chuduco”-, as primeiras cantadas em crioulo e com verso popular. Em seguida, fez umas cópias em cassetes que foram levadas a Conacri pelo agente duplo Adulai Dabi e ficou decidido que seriam difundidas simultaneamente em Bissau e em Conacri. “Foi em 1970 ou 1971. Passaram no meu programa e na Rádio Libertação. A sua difusão teve um impacto tal que a PIDE teve medo de me prender. Mas acabei por ser compulsivamente expulso das Forças Armadas”, recorda Cancan.
Com a independência, a Rádiodifusão Nacional (RDN) torna-se num dos principais veículos de promoção da música guineense no quadro da política cultural que apostava na divulgação da música nacional como forma de consolidação da identidade guineense. Nos anos 1980, ela esteve inclusive associada a um projecto de recolha musical sob a tutela do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) e a Direcção Geral da Cultura (DGC). Num artigo intitulado “Estudos e pesquisas sobre a música tradicional”, publicado na revista Soronda de Junho 1986, lê-se que se tratava de um projecto de investigação permanente com vista à constituição de um arquivo sonoro que incluía fases de recolha, classificação e disponibilização.
Graças aos estúdios das rádios, tanto os músicos tradicionais como os modernos puderam gravar os seus trabalhos, o que permitiu o seu reconhecimento. Zé Manel foi um deles. O grande público conhecia o baterista do Super Mama Djombo mas apenas os colegas de liceu sabiam que tocava violão e cantava. O jornalista Santi gravou algumas das suas músicas para difundí-las na rádio. Então, quando o mesmo Santi sugeriu-lhe que organizasse um concerto, o público presenciou o evento em massa. “Aconteceu numa altura em que decorria o terceiro congresso do PAIGC, em Setembro de 1977. Pouco antes do concerto, um colega veio ter comigo e disse-me que os bilhetes estavam esgotados. Era verdade. Actuámos numa sala cheia de espectadores”. A rádio continua a gravar alguns músicos desejosos de ter uma maquete embora a procura tenha diminuído devido ao aparecimento de verdadeiros estúdios.
As rádios guineenses, sejam elas pública, privadas ou comunitárias, apostam sobretudo na música nacional, que chega a ocupar facilmente os setenta e cinco por cento da grelha musical, com destaque para a música moderna. Já em relação à promoção dos géneros tradicionais, a RDN é pioneira sobretudo com o programa “Domingo de Tina”, cuja primeira edição foi para o ar em 1998, numa altura em que o país estava mergulhado num conflito militar. A iniciativa foi lançada pelo jornalista Nílson Mendonça, pelo técnico Rui Manuel Furtado e pelo responsável da bandoteca Numo Só e acabou por ser alargada à jornalista Conceição Ramos Lopes, a sua principal animadora durante cerca de 20 anos.
“A ideia era difundir as músicas de mandjuandadi ou de tina, a fim de aliviar os guineenses do stress da guerra que as ondas de propaganda das partes em conflito disseminavam entre nós. Em Agosto de 1998, fui convidada para colaborar na animação do referido espaço. Passado algum tempo e por proposta de Nílson, assumi a continuidade de animação diária do espaço de músicas de Tina. Apresentei uma proposta à equipa, o programa tornou-se semanal e foi baptizado “Domingo di Tina”, aos domingos, entre as 14h30 e as 17h25. O programa passa a promover a tradição oral das mandjuandadi, nomeadamente a difusão das música de tina e os grupos de mandjuandadi”, num texto publicado no manual “A comunicação social na Guiné-Bissau”.
A aposta da emissora nacional acabou por inspirar a maior parte das rádios comunitárias, em particular as do interior do país. Rádio Sintchan Occo, em Gabú, criou “Domingo di tina” e “No kunsi no djidiu”, a Rádio Comunitária Uler a Band, de Canchungo, “Kabas garandi” e a Rádio Kassumai, “No vivi no cultura”. Vários programas mas todos com o mesmo conteúdo, as cantigas de mandjuandadi.
M.C., com V.M.
Deixe um comentário