Vozes de mulheres
Nos géneros tradicionais, nomeadamente as cantigas de mandjuandadi, as mulheres são rainhas. De acordo com a pesquisadora Odete Costa Semedo, as mulheres vêem neste género uma forma de encarar as “desventuras” que a vida lhes impõe “e de expressar sentimentos e atitudes como a amizade, o amor, as desavenças, a rivalidade, a reconciliação, a maternidade e a infertilidade feminina”. (26) Sendo a mandjuandadi parte integrante da cultura guineense, a sociedade não vê mal algum na presença dessas cantadeiras na praça pública.
A situação é idêntica em relação às mulheres djidius, nomeadamente as Dimba Ya. Cantoras excelentes (originárias das regiões de Oio e Cacheu, assim como da costa litoral oeste-africana – região da Casamansa, no Senegal e Gâmbia), elas têm em comum o facto de não poderem ter ou de terem perdido os seus filhos, acabando por ser “entregues” a curandeiros ou ferreiros na procura de uma solução. É esta tragédia pessoal que elas evocam nos seus cânticos. Na sua tese de doutoramento, Maria da Conceição das Neves Silva acrescenta que muitas foram djidius da guerra da independência, acompanhando os nacionalistas, inclusive Amílcar Cabral. As suas canções serviam para estimular os combatentes. (27) A carreira da cantora Fatú Kanuté, falecida em 2009, é exemplo da aceitação das mulheres oriundas da música tradicional. Nascida numa família de djidius, a irmã de Sambala Kanuté começou a cantar aos 12 anos e, já adulta teveuma carreira normal marcada pela gravação de dois álbuns, “Dunia” e “Badina”.
Já no caso da música moderna, a aceitação da mulher é bem diferente… Inês Trimó, antiga aluna da Escola Nacional de Música José Carlos Schwarz formada em canto e piano em Lisboa e uma das raras instrumentistas, nem sequer faz parte do panorama musical do país. Por detrás da presença feminina, pouco expressiva, estão o peso da tradição e a forma como as artistas são vistas pela sociedade. “Existem ainda muitos preconceitos. No caso da música de tina, não há problema pois os grupos de mandjuandadi constituem um modo de vida e a música representa apenas uma componente. Já em relação a uma cantora que sobe ao palco, que actua durante a noite, existe alguma resistência. Graças a Deus, a minha mãe sempre encorajou este meu lado artístico e não tive problemas”, conta a cantora Karyna. Aminata prefere denunciar aqueles que tentam aproveitar-se das jovens artistas com falsas promessas: “Muitas pessoas vêm atrás de ti, dizendo que podem ajudar-te a gravar um disco, mas, na verdade, estão interessadas noutras coisas.”
Dulce Neves, 30 anos de carreira e considerada a “Embaixadora da Música Moderna Guineense”, sofreu na própria pele esta oposição masculina e da população em geral. “A sociedade não ajuda. Ela nos vê como bandidas e prostitutas. Penso que a minha decisão de cantar foi uma das razões que levaram o meu padrasto a separar-se da minha mãe. Tinha participado num espectáculo do Super Mama Djombo e quando regressei, estava a mala da minha mãe ao pé da porta. Correu com nós todos e tivemos que ir parar à casa do meu tio.”
Mas a jovem de então 16 anos já tinha feito a sua escolha e estava decidida a integrar o Super Mama Djombo, conjunto que tinha ido buscá-la ao grupo teatral Afro Cid. Nunca mais abandonaria a música. Após longos anos no conjunto, iniciou uma carreira a solo a partir dos anos 1990, culminando na edição de três álbuns: “Nha distino” (1995), “Valor di mindjer” (2000) e “Mundu rabida” (2008). “Levo tanto tempo para gravar porque na Guiné-Bissau é muito difícil conseguir apoios para financiar um projecto de gravação.” Os patrocínios são raros e os poucos espectáculos organizados em Bissau distribuem cachets pouco elevados. Mas nem por isso pensou emigrar. “Não podemos sair todos. Alguns têm que ficar para viver a realidade do país. A solução chegará quando o Estado assumir que a cultura é o espelho do país. Assim, avançaremos.” O único reconhecimento estatal prende-se com o título de embaixadora, atribuído pelo antigo Presidente da República Kumba Yalá.
Dulce canta os problemas sociais, o papel da mulher, a família, as dificuldades por que passou, com textos da sua autoria. “Há momentos em que sou muito produtiva. Por exemplo, quando estou zangada ou revoltada. As pessoas dizem que falo muito da minha vida pessoal nas canções. É uma forma de expressão normal.” O envolvimento nas causas sociais levaram-na a gravar uma canção alertando para o perigo que representa o SIDA e ser rosto de uma campanha contra a doença. Sem pôr termo à carreira a solo, Dulce reintegrou o Super Mama Djombo na segunda metade de 2007 para gravar “Ar puro”. Ali reencontrou Atchutchi e Zé Manel, os dois artistas que 30 anos antes a convidaram a integrar o conjunto, mas também músicos da nova geração, como a cantora Karyna, que ela apresenta como a sua “sucessora”.
A “sucessora” de Dulce não escolheu o mundo da música por acaso: é neta de Ivo Carvalho Silva, cantador de mornas, sobrinha-neta do clarinetista Toi Cabral e prima dos músicos Justino Delgado, Micas e Juvenal Cabral. “Aprendi com a minha mãe. Cresci ouvindo alguns géneros populares portugueses, como a ‘Canção da árvore’, e mornas que ela costumava cantar”. A paixão cresceu em Bissau mas o baptismo musical de Karyna só acontece em 1997, numa igreja do Brasil, país aonde fora tirar um curso superior. “Tinha começado como simples corista num grupo. Após alguns meses, fui convidada para interpretar, a solo, “Now be hold the lamb”, um gospel de Kirk Franklin and The Family. A nota era altíssima, mas o maestro disse que confiava em mim. Naquele dia, descobri a minha vocação”, recorda a cantora.
Mais do que o CD “Now be hold the lamb” gravado com o grupo coral, a passagem pelo Brasil e pelo canto religioso ajudou-a a descobrir um estilo próprio. “O que faço tem a ver com a minha vivência. Sou filha de mãe cabo-verdiana e pai guineense, que cresceu ouvindo muita música do continente americano, nomeadamente blues e artistas como Whitney Houston, música brasileira e reggae, mas a minha paixão é a música tradicional guineense, nomeadamente o gumbé e a tina. O meu sonho é juntar-lhe alguns acordes para torná-la mais rica”, precisa Karyna, que quer assim seguir as pisadas de Zé Manel, Manecas e das compatriotas Eneida Marta e Dulce Neves. “Costumo dizer que para conseguires ser boa como cantora, tens que ter um pouco da Eneida e um pouco da Dulce. Gostava de ter a energia da Dulce em palco.”
Definindo-se nesta etapa como uma artista em fase de aprendizagem e desenvolvimento, a cantora prefere avançar por etapas. Membro do Super Mama Djombo, tendo gravado dois temas do álbum “Ar puro”, Karyna prepara, sem pressa, o álbum de estreia, escrevendo as letras de futuras canções: “São mensagens de fé e de superação. Vivemos num mundo difícil, o respeito quase desapareceu, a droga circula com facilidade. Mas, mais do que levantar problemas, procuro propor soluções”. Uma coisa é certa: não contem com ela para gravar temas comerciais. “Quanto mais próximo da cultura estiveres, mais sucesso terás no estrangeiro”, justifica.
Eneida Marta também elegeu a música genuína guineense como meta. Para trás ficaram os primeiros trabalhos discográficos, nomeadamente “No storia” e “Amari”, que descreve como uma imposição das editoras, em nome da ditadura do mercado. O álbum lançado em 2006, “Lôpé kai”, o quarto na sua discografia, parece dar-lhe razão no seu regresso às origens, pois um dos temas – “Mindjer doce mel” – faz parte da compilação “Accoustic Africa”, da editora Putumayo, especializada em “world music”.
A carreira da cantora arrancou em Lisboa no ano 2000. Tinha o bicho da música, mas nunca tivera uma oportunidade até ser apresentada ao músico Juca Delgado, por um membro do conjunto Issabary: “Contei-lhe o meu interesse em cantar e gravar.” Resposta do Juca: “Pedi-lhe para cantar. É o primeiro passo para avaliar uma pessoa. Ouvi uma voz bonita e boa, que dava para trabalhar.” Eneida foi então convidada pelo intérprete e compositor para fazer coros no projecto “Mon na mon – Juntos para a Guiné”, uma compilação destinada a angariar fundos a favor de uma organização de apoio às vítimas do conflito armado de 1998-1999. Foi o primeiro verdadeiro contacto com a música profissional.
Em seguida, Eneida começou a tomar aulas de canto, isto é, aprender a respirar, colocar a voz, interpretar, etc.: “Passas a sentir-te mais tranquilo naquilo que fazes e o desempenho em termos de canto e de presença no palco é melhor.” Em 2001, a cantora lança “No storia”, um álbum de estreia bem recebido pela crítica, seguindo-se-lhe o maxi-single “Amari” em 2003, em que interpreta o clássico “Mindjeris di panu pretu”, entre quatro temas. Em 2006, chega ao mercado “Lôpé kai”, que a cantora define como o trabalho que sempre quis fazer – um disco livre das influências do zouk e promovendo o gumbé e outros ritmos guineenses, com uma roupagem moderna, sob a direcção musical de Juca Delgado.
Se os primeiros discos deram alguma notoriedade a Eneida, em Portugal, o terceiro álbum de originais abriu-lhe as portas da world music e outros países, nomeadamente Espanha. “Hoje, 98% dos concertos de Eneida Marta têm lugar fora de Portugal. Deixou de ter sucesso ali quando parou de gravar zouk”, precisa Juca, o director musical da sua banda. Doravante, a cantora está apostada num “trabalho genuíno, com bom som e muito bem interpretado” e a escolha começa a dar resultados. Em 2008, efectuou a primeira digressão pelos Estados Unidos e Canadá.
No entanto, Portugal continua a ser uma passagem obrigatória dos artistas guineenses, alguns dos quais com algum sucesso. Um dos exemplos aconteceu aquando da edição 2006 do Festival RTP da Canção, com o terceiro lugar conquistado pela guineense Nathalie Insoambé, com o tema “Durmo com pedras na cama”. “Foi uma experiência única porque nunca tinha cantado na televisão”, nota. O feito até podia abrir as portas do mundo da música à Nathalie “linda de ver” (significado do seu apelido em balanta). “A pessoa que me tinha contactado para o concurso se propôs produzir-me durante três anos mas não aceitei a proposta sobretudo porque queria fazer algo mais próximo da cultura guineense.”
Até então, Nathalie, filha de Victor Caudo, antigo cantor do Super Mama Djombo, estava sobretudo virada para outras músicas, em particular a cabo-verdiana. “Como não gostava muito de ouvir zouk, ia à Lontra ou à Casa da Morna ouvir música ao vivo. Foi ali que me começaram a chamar para cantar nos intervalos. Aos 16/17 anos, já fazia coros com Tito Paris. Aprendi a colocar a voz, a pegar no microfone e a estar em palco.” A mudança de Lisboa para Londres coloca-a sob a influência do jazz e de cantoras como Erikah Badu e Nina Simone. Hoje, Nathalie parece apostar na música e na cultura guineenses: “Não será algo puramente guineense, mas a base tem que vir daqui. Ainda não encontrei a forma de expressar o que pretendo, mas há algumas certezas: o uso do crioulo, a introdução da tina e das manjduandadi e um cheiro de jazz.”
Sinal de alguma evolução na sociedade guineense, 2007 assistiu ao aparecimento na cena musical de jovens cantoras, ainda pouco conhecidas do grande público. É o caso de Muna e Maram, que participaram na compilação “Guiné no coração”, ao lado de Patche di Rima. Por seu turno, Eneia e Samantha estiveram na edição 2007 da Fête de la Musique, organizada pelo Centro Cultural Franco-Guineense. Ira, também candidata na edição 2008 do concurso, estreou-se na música no seio de um trio feminino chamado Badjudas di Tabanca, o que não a impediu de dançar, ser rainha do Carnaval e representante da Guiné-Bissau no concurso Miss CEDEAO 2002. O seu primeiro trabalho discográfico é aa compilação “Projecto Horizonte Vol. I”, ao lado de outras duas jovens mulheres, Sílvia e sobretudo Aminata.
Aminata começou a cantar em 2005, num grupo coral da Igreja Evangélica. Em 2007, deu o seu primeiro espectáculo e venceu um concurso de vozes femininas promovido pelo Ministério da Cultura, no qual interpretou um tema da sua autoria e “Mindjer garandi”, de José Carlos Schwarz. Como todos os artistas, Aminata também sonha criar um estilo musical próprio, mas, até lá, procura sobretudo aprender através dos contactos com músicos mais experientes, seguindo os seus conselhos e dicas, tais “como inspirar e respirar quando se está a cantar”, deixada pela fadista portuguesa Marta Martins, com quem cruzou durante a sua passagem por Bissau.
V.M.
(26) Semedo, Odete Costa , ob. cit, p.108-109.
(27) Silva, Maria da Conceição das Neves, Islam, « paganisme » : identité et pratiques religieuses chez les Balanta Mané / Bejaa en Guinée-Bissau EHESS, Paris 2005.
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