Precursores, incontornáveis e anónimos
Até final dos anos 1970, início 1980, os grandes nomes da música moderna guineense eram os conjuntos. Na altura, não se falava de individualidades, mas, mesmo assim, houve quem não esperasse pelas mudanças para dar nas vistas. O autor, compositor e intérprete Aliu Bari é um deles. Apostado em fazer música desde cedo, compra um violão e procura um tal Armindo Fonseca para lhe ensinar a tocar. Passava horas em casa do músico e juntos interpretavam canções de Cabo Verde e do Brasil. Armindo fazia solo e Aliu acompanhava-o. Foi assim durante um ano e apesar do “mestre” não gostar daquela tendência do “aprendiz” em querer sempre cantar composições próprias e em crioulo, Aliu Bari acabaria por se tornar guitarrista. O encontro, muito mais tarde, com José Carlos Schwarz e outros artistas como Ernesto Dabó e Ducko, vai culminar na criação do Cobiana Djazz. Aliu Bari podia finalmente cantar as suas composições em crioulo e ser ouvido por um povo para o qual estava a lutar.
Bari, tal com Dabó, Schwarz, Ducko Fernandes e Rui Dayves, entre outros, fazem parte da geração de finais de 1960/começo dos anos 1970 que marcou a música guineense. Segundo João Cornélio, os músicos da geração de 1970 caracterizavam-se pelo seu engajamento político, com textos com um forte pendor interventivo. Uma geração a que se juntaram, a partir de meados de 1970/1980 figuras como Atchutchi, Taborda, Chico Caruca, Sidó, Tundú, Narciso, Tuti, Ramiro Naka, Maio Cooperante, Olívio, Guto Pires, João Mota, Tchando, Néné Tuti, Tchinho Centeio, João Sanfa, João Gomes “Nhama” (ex-futebolista e membro do Mbaranso), Patalino, Buka Pussick, Micas e Fernando Fafé, e mais tarde, Patcheco di Gumbé, Mário Babrem, Malam Bâ Cissé, entre outros.
Miguelinho Simba também faz parte desse segundo grupo. Guitarrista, no início da sua carreira, em 1972, no seio do Ritmo Guineo, actuou seguidamente no Cobiana Djaz antes de passar para o Mama Djombo. Foi nesse conjunto que começou a tocar saxofone. Após duas estadas na Holanda, regressou ao país onde trabalhou com o músico Maio Cooperante, fundando o Gumbézarte e mais tarde o Djumbai Jazz. Fafé passou pelo Gumbézarte, após um percurso que começou como pianista e incluiu ainda os conjuntos Gatos Negros, No Pintcha e Pussua Nanki: “Foi no Pussua Nanki onde comecei como guitarrista. Até então, apenas cantava nos conjuntos por onde tinha passado.” Em 1994, enveredou por uma carreira a solo, tendo gravado o seu único LP, “Djanfa”, que traz o popular “Nha faka na bo kuku”.
Djamanca foi também membro do Pussua Nanki depois das passagens pelo Mbimbotcha (Fidjus di Terra), África Livre e Tchifri Preto, conjunto que, na sua opinião, “mais espectáculos dava nas regiões”. Em 1984, o artista decide trabalhar a solo, mas uma actuação perante o então Presidente da República, João Bernando Vieira (Nino), em Cuméré, trá-lo de volta a um conjunto: “Com o fim do Cobiana Djazz, o Presidente pediu-me para formar um outro conjunto. Assim nasceu o Pussua Nanki.” Djamanca gravou três ábums a solo, dos quais se destacam “Saudades” e “Rony”.
Foi nos anos 1980 que Justino Delgado começou a dar nas vistas. “O Agostinho Capachita levou-me para o Flor d’África. Depois passei pela Juventude Koburnel e mais tarde pelo África Livre, Super Mama Djombo e o Nkassa Cobra. Um dia decidi criar um grupo próprio; assim nasceu o Docolma, entre 1984-1985, um grupo de jovens que animava espectáculos e bailes.” Em 1987, Justino viaja para Portugal, já a pensar em fazer da música a sua profissão, numa altura ainda pouco favorável à música africana. Mas, após muito sacrifício e o apoio das irmãs, a editora Vidisco aceita a sua maquete e lança “Casamento d’aós”. Sinal do seu sucesso, o artista é convidado do programa “Estúdio 4” da RTP.
A carreira de Justino Delgado arranca definitivamente na capital portuguesa, onde trabalha com os músicos guineenses que o tinham acompanhado na sua viagem e músicos cabo-verdianos como Paulino, Toy Vieira e Tito Paris. Além de ser uma das grandes vozes guineenses, Justino Delgado é também um dos músicos guineenses com mais álbuns gravados, nomeadamente “Lola”, “Tétété”, “Geraçon nobu” e “Lei di bida”, considerado pela editora Rough Guide um dos dez melhores álbuns da discografia da Guiné-Bissau. Em todos estes discos, o autor fez questão de gravar composições próprias. “Procuro aprender tudo aquilo que possa ser útil na minha carreira: cantar, dançar, tocar percussão e compor. Tal como a voz, a composição é um dom que me foi dado por Deus e uma inspiração do momento.”
Na lista dos músicos guineenses, os cantores ocupam um lugar de destaque. São sobretudo homens, embora a primeira década de 2000 tenha registado o aparecimento de algumas cantoras. Entre as vozes masculinas, destaca-se Rui Sangara, cujo primeiro álbum, “Po di buli”, foi editado pela Sonovox em 1997, sete anos após a sua chegada à capital portuguesa. O disco valeu-lhe o título de “artista do ano” na Guiné-Bissau, embora o reconhecimento pelo público fosse anterior ao lançamento do álbum. Com efeito, em 1988, Sangara tinha ficado em segundo lugar no concurso Descoberta, atrás do irmão e também cantor Atanásio Atchuen. Foi graças aos incentivos deste que Rui acabou com as hesitações em relação à música. “O Atánasio não parava de me dizer que eu não podia cantar apenas para mim e que devia fazê-lo em público.” Após uma passagem pelo Docolma, a convite de Justino Delgado, e várias actuações no país, parte para Portugal, em 1990, onde os seus álbuns lhe garantem novos prémios: “Som na Bombolom” traduz-se num novo título de artista do ano na Guiné-Bissau e o primeiro “Best of…” conquista um disco de prata.
Atanásio Atchuén, o irmão mais velho de Rui, começou a cantar aos 16 anos no Mini África Livre. “Devo muito a um músico mais velho e experiente chamado Patchi Melo. Eu costumava assistir aos ensaios do seu grupo África Livre e ele convidou-me para ensaiar. Faz parte das pessoas que agradeço por me terem motivado”, recorda o ex-membro do conjunto Docolma. Em 1988, segue para Lisboa, a fim de integrar o conjunto Issabary. As coisas não correm como previsto mas o cantor, já a solo, estreia-se no mercado discográfico com “Aventura”. Dono de uma voz poderosa, a sua discografia inclui igualmente “Preta di Guiné”.
Algumas das vozes masculinas residem em cidades como Lisboa, Paris ou Dakar, entre elas quatro dos porta-estandartes do gumbé-zouk: Domingos Mustasse, Américo Gomes, Djipsom e Roger. Tino Trimó também vive no estrangeiro, mas mantém-se fiel ao gumbé clássico. Ex-jogador do Sporting de Bissau e da UDIB, o artista esteve muito tempo dividido entre a música e o futebol. Aliás, foi graças ao desporto-rei que o seu nome de baptismo Constantino de Pina foi trocado por Tino Trimó, em homenagem aos seus dotes de fintador. Certo dia, porém, o futebolista contraiu uma lesão numa perna e nunca mais deixou de cantar. Em 1989, grava a cassette “Guiné di nos” e inicia-se no violão ao lado de Abdulai Bangura e Abel de Carvalho, multiplicando colaborações com outros músicos, nomeadamente Fernando Pitchetche. Em 1992, é convidado pelo Super Mama Djombo para gravar a banda original do filme “Os olhos azuis de Yonta”, do seu compatriota realizador Flora Gomes, lançando no ano seguinte o seu primeiro álbum a solo, “Cambalacho”. O conflito de Junho de 1998 muda o seu destino. “Nunca foi intenção minha sair mas aquela guerra tirou-me da Guiné-Bissau.”
A nova geração de cantores tem em Patche di Rima e Binham as principais estrelas. Binham chegou à música depois de ter passado por um grupo coral da Igreja Evangélica de Bissau. Em seguida, optou pela música profana, como diz, primeiro a solo e depois criando o conjunto Friquison, com outros colegas. Em 2007, Atchutchi convidou-o a integrar o Super Mama Djombo. Quanto a Patche di Rima, é o ídolo das crianças e dos jovens. Depois do período rap, com Solo Criolo, Mantambeza e Vatos Locos, virou-se para o gumbé e começou a escrever as letras das suas canções, o que lhe valeu alguns prémios. Em 2007, após a gravação de “Guiné na Corçon”, é nomeado artista do ano. A sua discografia inclui algumas colectâneas e “Genial”, o seu primeiro álbum.
Freedecks, ex-membro do Mansaflema, que se estreou no “Projecto Horizonte Vol. I”, Frank Bidin e MC Cadio completam a longa lista das novas vozes masculinas. MC Cadio é filho do cantor Carlitos Yofa, falecido acidentalmente em Lisboa, em 1996. “Para mim, andar na música é uma forma de dar continuidade à obra do meu pai”, revela. A longa lista dos cantores até chegou a incluir um ministro – Baciro Dabó – morto em 2009, menos de um ano depois de ter lançado o seu primeiro álbum.
Tal como os cantores, os guitarristas aparecem numa posição de destaque na música guineense. Entre eles, Patche Melo, Bari, Zé Manel, Manecas Costa, Demba Duarte, Fernando Pitchetche e Waldir. A opção pela música por parte de Waldir deveu-se a uma deficiência física: “Quando cheguei à sexta classe, tinha duas opções: a educação física ou as oficinas. Como era deficiente, escolhi a música.” Paralelamente ao liceu, Waldir frequentou a Escola de Música de Bissau, tendo feito parte da sua banda musical. Uma aprendizagem a que também esteve ligado o primo Toy Delgado; hoje, Waldir divide a carreira musical entre o Super Mama Djombo e as colaborações com outros artistas em Bissau.
Pitchetche começou no Mini-Cobiana onde tocava viola solo antes de viajar para Lisboa e tirar um curso. De regresso a Bissau, funda o Charlot Tour com outros músicos, entre eles Tino Trimó, multiplicando as actuações, destacando-se a participação, em Abidjan, na edição 1997 do Mercado das Artes e Espectáculos Africanos (MASA, segundo a sigla francesa). Igualmente fundador, em 2006, do conjunto Friquison, é o solista do Super Mama Djombo.
Descendente de régulos, Demba nunca pensou que o seu destino passaria pela música; no seio da família, o músico era visto como um pedinte e um djidiu. Viajou cedo para Portugal, formou-se no Instituto Superior de Agronomia em Portugal e começou a sua vida profissional no sul do país mas acabou por optar pela música: “Comecei a tocar e cantar para turistas. ‘No woman no cry’ é um dos primeiros temas que interpretei apesar de não conhecer bem as letras. A partir de 1988 comecei a viver da música. Tocava no verão e o que ganhava permitia-me viver o resto do ano”. Demba passa o tempo entre Portugal e a Holanda onde frequenta o conservatório entre 1992 e 1998, opção guitarra e baixo. É nesse país onde funda o grupo Sulu Demba, integrado por uma dúzia de membros que participou em festivais na Europa e em 1992 participou na gravação do álbum de Maio Coopé. Mas, à semelhança da maioria dos guitarristas, ainda não gravou nenhum álbum a solo. Antão Martins, com “Homi Nobu” e “Vozes da Guiné”, é uma das excepções.
Em 2009, o site www.gumbe.com publicou uma lista de cerca de 130 músicos, com vários instrumentistas e poucos nomes femininos. Uma lista que se pode dividir em três grupos, isto é um pequeno número com alguma projecção no circuito mundial, um grupo razoável de artistas conhecidos na diáspora guineense e até no meio lusófono, e a maioria cuja fama limita-se à Bissau ou ao país mas que são essenciais para o desenvolvimento da música guineense nos seus mais varias ritmos. Destas duas últimas listas constam nomes como Patcheco di Gumbé, Chacha di Charmi, Mário Babrem, Malam B. Cissé, Eliseu, Jair, Frank Bedim, Toni, Tony Dudu, Waldemar, Ito, Tumani e Filomeno Lopes, um licenciado em Teologia e doutorado em Filosofia e Comunicação – cujo álbum gravado em 2008 é uma forma de com o propósito de propagar a mensagem de Deus.
V.M., com M.C.
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