Rostos da nova música guineense
As fases de modernização por que vem passando a música guineense remontam aos anos 1970/1980. O slow, então estilo incontornável com solos de guitarra característicos, é um dos exemplos bem sucedidos do encontro entre melodias ocidentais e guineenses. Nos anos 1980 e início de 1990, Miguelinho, Maio Coopé, Sanha N’Tamba, Ernesto da Silva, Djanuno Dabó (no seio do grupo Tama) e Kaba Mané fizeram algumas experiências misturando ritmos da Guiné-Bissau com o pop e o jazz. É justamente a aposta nas coisas diferentes que valeu a Maio Coopé a sua alcunha. “A minha forma de vestir para muitos assemelhava-se aos europeus que, nos anos 1980, começaram a chegar à Guiné-Bissau e que na altura eram chamados cooperantes, daí o diminuitivo Coopé. Quanto a Maio, é a alcunha em crioulo de Mário.”
O processo de evolução rítmica deve-se à emigração de vários artistas e o encontro com novos estilos e, mais tarde, à necessidade de conquistar outros públicos, dando origem ao que se pode chamar uma nova música. A melodia desta nova música bebe em duas fontes. Por um lado, ela nasce de uma nova roupagem da música tradicional e tem como porta-estandartes conjuntos como o duo Iva & Ichi e o conjunto Furkutunda. Por outro, é o resultado do casamento entre géneros guineenses com músicas de outras regiões do mundo, sendo Ramiro Naka, Manecas Costa, Bedinte e Zé Manel Fortes, alguns dos seus rostos mais visíveis.
A projecção mundial de Zé Manel é inequívoca. Conquistou prémios internacionais com “Maron di mar” e foi o compositor da banda original de “Bintou Wéré”, a primeira ópera africana. Na música de Zé Manel, o crioulo e os ritmos da sua terra natal juntam-se a ritmos estrangeiros que o artista atravessou para culminar numa sonoridade em que se cruzam afro-beat, soul ou funk com a voz do cantor a dar o mote. “Se ouvirem as minhas composições do início ao fim, hão-de reparar numa música contemporânea africana. Não será música tradicional.”
A sua relação com a música começou cedo: “Era adolescente quando integrei o Mama Djombo.” Ali permaneceu 15 anos até se tornar numa das principais figuras do conjunto. “O Mama Djombo sempre teve os melhores músicos. Na altura, cinco dos 14 membros do conjunto eram vocalistas e faziam as suas próprias composições. Para cantar, havia uma hierarquia que se devia seguir. Eu era baterista.” Um espectáculo durante o qual cantou perante uma sala cheia iria alterar definitivamente o quadro, com consequências no conjunto. “Durante uma reunião, fui acusado de estar a criar instabilidade no grupo. Mas o Atchutchi tomou a palavra e pôs as coisas no devido lugar. Disse que não havia problemas em eu dar espectáculos na medida em que eu não era vocalista do Mama Djombo.”
Perfectionista nato, o músico frequentou a Escola de Música de Bissau durante um ano antes de passar outros quatro no conservatório em Portugal, dos quais três dedicados à técnica de colocação da voz e ao piano. “Hoje, concentro-me no trabalho de músico, procuro fazer cada dia melhor. Por enquanto, as coisas têm andado bem”, nota. Em termos discográficos, Zé Manel gravou quarto álbuns a solo, além dos discos com o Super Mama Djombo. Se a inovação rítmica caracteriza a sua música, o artista é igualmente admirado pela força dos seus textos, verdadeiras críticas sócio-políticas. “Não procuro dar a volta às coisas: verde é verde. Existe uma linguagem do povo: ou as pessoas entendem ou não entendem. Nunca tive medo de dizer o que penso”, lança o artista. Por exemplo, em “Testemunhas di aonti”, lançado em 1982, o músico denuncia algumas práticas durante o regime de partido único que vigorou no país a seguir à independência e até meados dos anos 1990. Os tempos mudaram mas o verbo do artista mantém-se inalterado, embora com uma inovação: além do crioulo, Zé Manel não hesita em interpretar alguns temas em francês ou inglês. “A mensagem vai mais longe”, sublinha.
Foi o desejo de ir mais longe que levou Bedinte a trocar Portugal por Espanha, em 1992. Até então, vivia em Lisboa, onde chegara em 1988, com Justino Delgado e outros membros do Docolma. Na capital portuguesa, as coisas até pareciam correr bem, com espectáculos do grupo que o compositor e intérprete cabo-verdiano Paulino Vieira tinha decidido apadrinhar. “Foi ele que me ofereceu a minha primeira guitarra eléctrica. Pedia-lhe sempre para me emprestar a dele e um dia ele levou-me a uma loja e comprou-me uma Fender”, lembra o guitarrista e cantor. A nível individual, Bedinte participava em projectos de outros artistas, como o angolano Eduardo Paim. Mas certo dia, o músico guineense decidiu mudar de ares: “Cheguei à conclusão que o projecto que idealizava não podia avançar em Lisboa porque ali só me dirigia à comunidade africana quando o objectivo era chegar ao público europeu, tal como o camaronês Richard Bona conseguira em Paris.”
Em Espanha, após uma fase de adaptação marcada por actuações em estações de metro e pequenas salas de espectáculo, o trabalho de Bedinte é reconhecido por uma figura da world music (David Byrne, do conjunto Talking Heads), sendo-lhe assim abertas as portas para a almejada carreira. O primeiro álbum –“Kumura”–, lançado em 1998 (com o guineense Cristiano Cassamá na tina), leva-o aos palcos da Alemanha, Bélgica, República Checa e Estados Unidos. “Aquele trabalho representa aquilo que queria.” Seguiu-se “Irã di Fankás”, marcado por um investimento enorme da editora para a produção do clip. Em ambos os álbuns, Bedinte traz uma música popular aberta às influências modernas com uma sonoridade acústica. Apesar de trabalhar sobretudo com músicos estrangeiros, a raiz guineense mantém-se: “Se há uma coisa que consegui fazer com sucesso foi misturar a tina, guitarras africanas e uma guitarra flamenco.”
Corria o ano 2000 e para Ramiro Naka as coisas não estavam muito bem: “Eu viva um impasse.” O antigo membro do N’Kassa Cobra até tinha decidido voltar as costas à música: “Já tinha dito que me ia despedir e deixar a cena musical internacional para regressar a África. Era também uma forma de dar uma oportunidade à nova geração de músicos.” Mas o conflito militar de 1998 inviabiliza o regresso à terra natal. Naka volta então a pegar na guitarra e recomeça a compor: “Os temas eram difíceis mas algumas pessoas começaram a encorajar-me, dizendo que apesar de não querer fazer mais música, eu era a única pessoa capaz de tocar aqueles canções.” Com a vontade e a criatividade de volta, o artista estabelece um novo estilo: “Foi asssim que nasceu o gumbé-blues-kriol. Foi muito complicado e exigiu muito trabalho, uma média diária de cinco horas a tocar violão e de canto para construir o repertório.”
Em termos musicais, o gumbé é o motor e o ritmo dominante deste gumbé-blues-kriol. É a parte africana desta nova música embora, tal como defende Ramiro Naka, o blues também partiu do continente negro. “Não sei se é a África que lhes deu o blues ou o contrário, mas acredito que a África é a mãe.” No entanto, o artista guineense não nega alguma influência dos músicos do blues: “O facto de ter vivido mais de 30 anos na Europa pode levar-me a pensar que houve alguma influência. Para mim, a música é uma linguagem internacional.” Em 2008, o projecto do músico guineense ganhou definitivamente corpo com a apresentação, no Sattelit Café, sala incontornável da world music, em Paris, do seu trabalho discográfico “Gumbe Blues Kreol”.
A constatação consta de um sítio dedicado à world music. Segundo o artigo, não fossem os conflitos e a instabilidade política, a música guineense podia ter conhecido um sucesso igual à música de Angola ou de Cabo Verde, graças a uma variedade rítmica e a artistas talentosos, como Manecas Costa: “Manecas Costa é uma das novas e bonitas vozes que chegam de África. Um cantor, compositor e virtuoso da guitarra, natural da Guiné-Bissau, cuja música tira as raízes da rica tradição do ‘gumbé’, a música da sua terra natal.”
Manecas é acima de tudo um artista precoce: tinha 11 anos quando deu nas vistas durante um festival em Bissau ao pedir um minuto de silêncio em memória de Marien Ngouabi, o presidente do Congo que tinha sido assassinado naquele dia, corria o ano de 1978 e Manecas fazia parte do conjunto África. Mais tarde, a defesa das boas causas nas suas canções vão fazer dele um embaixador de boa vontade do UNICEF no país.
Em 1990, instala-se em Lisboa, onde desenvolve a sua carreira no meio lusófono, colaborando nomeadamente com o angolano Waldemar Bastos. A participação no concurso “Découverte” da emissora francesa RFI reforça a sua visibilidade e, passado algum tempo, edita o seu primeiro trabalho, “Fundo de Matu”. Lançado poucos anos depois, “Paraíso di gumbé” veio confirmar o talento deste artista que reivindica a influência de José Carlos Schwarz e abrir-lhe as portas da world music graças a uma sonoridade ao mesmo tempo acústica e eléctrica, influenciada pela energia musical da Guiné-Bissau.
Do grupo dos promotores da nova música guineense que mistura géneros da terra e de outras paragens faz também parte Remna, artista ainda pouco conhecido mas que traz uma herança importante: é filho de José Carlos Schwarz. Após as experiências pelo coro, rap e reggae, o jovem descobre a música e o pai, falecido quando ainda era bebé. “Ele desapareceu de forma trágica e durante muito tempo a nossa mãe teve dificuldades em falar dele. Mas ao ouvir a canção ‘Lua ka ta kema’, no Bairro da Ajuda, em Lisboa, fui interpelado pela sua mensagem e, apesar de se tratar de um contexto diferente, lembrou-me que somos sempre atraídos por tudo o que brilha. Decidi então interessar-me pela música de África, apesar do reggae ter uma raiz africana.”
O jovem músico decide aprender a tocar violão para poder “ter uma certa autonomia como músico e poder compor” e hoje reivindica um estilo acústico próprio, mistura de ritmos da Guiné-Bissau e de países vizinhos, como a Guiné Conacri, Mali e Senegal, a que se juntam notas do hip-hop e do reggae. É esta a principal característica de “Saltana”, o seu álbum de estreia.
Quando se é neto, sobrinho e filho de membros de grupos de mandjuandadi, dificilmente se pode escapar ao seu destino musical. Naturalmente, Iva (Evaristo da Silva) e Ichi (Luís Mendes) acabaram por seguir as pisadas dos familiares, fazendo parte destas comunidades – “Patomal”, no caso de Iva, e “Bambaram”, no caso de Ichi – antes de, nos anos 1990, fundarem Netos de N’Gumbé. O conjunto permitiu divulgar a música tradicional guineense em Lisboa, cidade onde residiam, mas os dois artistas já tinham outros projectos ou seja criar um estilo moderno com a introdução de instrumentos modernos, traduzindo-se assim numa nova sonoridade.
Na altura, Iva justificava esta inovação pela necessidade de tirar a música tradicional do espaço étnico a que estava reduzida e conquistar novos espaços em terras lusas, conforme conta em “Netos do N’Gumbé: os sons da tradição”, um estudo em etnomusicologia realizado em 1990/2000 por dois estudantes da Universidade Nova de Lisboa, Catarina Saraiva e Pedro Crisóstomo. “O duo foi criado para pintar a música típica. Pintar para passar nas discotecas, em outros sítios que a música típica não passa.” Os autores até consideram a experiência como uma “estratégia comercial”. “Se o disco ‘Tudji ku N’Gumé’ revela a faceta musical tradicional da Guiné (…), os discos de Iva e Ichi pretendem retomar uma música ‘europeizada’ de carácter urbano, através da introdução de novos instrumentos musicais, onde os aspectos da tradição não estão tão evidenciados – embora nunca negados”, lê-se no estudo sobre a obra dos dois músicos. (28)
Porém, não se pode falar de europeização da música do Iva e Ichi. É tudo menos europeia, apesar de parte dos instrumentos serem ocidentais. Conforme Iva, a sua música foi pintada com cores africanas, nomeadamente o décalé da Côte d’Ivoire, tornando-a mais rica. A ligação à terra natal mantém-se graças à base rítmica herdada do gumbé e às mensagens em crioulo. A meia dúzia de discos gravada pelo dueto, os prémios conquistados no estrangeiro e as dezenas de espectáculos parecem ter-lhes dado razão quanto à opção de inovar. A outra grande característica do duo tem a ver com as letras das suas composições, facto que coloca os dois artistas no patamar dos grandes compositores guineenses, como Schwarz, Atchutchi, Aliu Bari ou Zé Manel. A música dos dois artistas é interventiva quanto baste, com denúncias e críticas ditas sem desvios, em que o recurso à metáfora é inexistente.
Tal como Iva e Ichi, os mentores de Furkutunda beberam nos grupos de mandjuandadi, que descrevem como uma escola em que se aprende “com os mais velhos”. Explicações de Luís, um dos três cantores do conjunto: “Nascemos debaixo dessa cultura: eu e o Ramiro somos do Norte. Estamos familiarizados com essas melodias, o que nos ajuda nas composições. O Nelson vem de Varela. Anda na mandjundadi desde os 16 anos e numa altura foi o mais jovem cantor de mandjuandadi.” A passagem à música moderna fez-se no seio de grupos da capital como o Nô Pintcha, das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP).
O nascimento do grupo ocorreu durante um espectáculo no Estádio 24 de Setembro, em Bissau, em finais de 2001. “O Ramiro tinha sido convidado para um festival mas como o evento não estava aberto a artistas a solo, convidou-nos para formar um grupo e tentar ser seleccionados. A comissão organizadora gostou e aceitou a nossa participação”, conta Luís. Até então, os membros do conjunto seguiam caminhos diferentes: Luís e Nelson Bomba (que não participou no espectáculo do 24 de Setembro) actuavam no Estrela de Ouro e Ramiro Cumba, mais conhecido por Rakuia, pertencia ao Som di Gumbé. Alguns dos futuros membros do Furkutunda – três guitarristas, um teclista, um baterista e um percussionista – também pertenciam a um ou outro dos dois conjuntos.
O nome foi encontrado um ano depois, pouco antes da sua actuação no Festival Kambadju “Paz e Integração Sub-regional”, no leste do país. Um espectador, impressionado pela energia dos músicos, lançou: “Puera na lanta na kil lado. Kil ladu bu lantanda puera (O vosso ritmo endiabrado levanta a poeira do chão). Isto significa ‘furkutunda’ em balanta. Foi assim que o conjunto ganhou este nome.” Volvidos sete anos, Furkutunda continua a levantar poeira – ou melhor, a fazer dançar – ao vivo e através das gravações, com destaque para o álbum de estreia “No djunta mom”. A receita é uma sonoridade em que os ritmos tradicionais trazem uma nova roupagem, marcada pela complementaridade das vozes dos três cantores e da introdução de instrumentos modernos. “Tradicionalmente, utiliza-se uma viola de três cordas, o kabás, tambor e as mãos para tocar a broxa. Introduzimos guitarras, teclados e bateria. O mesmo acontece em relação ao ntchintche, ao diambado e ao gumbé, que os grupos de mandjuandadi continuam a tocar de forma tradicional. Somos um conjunto moderno”, explica Luís.
V.M.
(28) Saraiva, Catarina e Crisóstomo, Pedro, ob. cit. p. 29.
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