A música mandinga
Falar da música mandinga é acima de tudo reviver a epopeia mandinga, nomeadamente o Mandé e o Imperador Sundjata Keita, que vem sendo transmitida de geração em geração pelos djidius, entre eles Balla Fasseké. É dele este episódio ocorrido em Kà-ba, algures na África Ocidental, em 1235: “Maghan Sundjata, eu te saúdo, rei do Mandé, o trono dos teus pais está à tua espera. Seja qual for a posição que ocupas aqui, renuncia às honras e vem libertar a tua pátria, os bravos estão à tua espera, vem instaurar a autoridade legal no Mandé; as mães cujos olhos estão cheios de lágrimas rezam por ti, os reis reunidos estão à tua espera, o teu nome, por si só, inspira confiança. Filho de Sogolon, a tua hora chegou, as palavras do velho Gnankuman Dua vão realizar-se porque tu és o gigante que derrubará o gigante Sumaoro.”
Sundjata Keita está sentado num banco e usa o traje das grandes ocasiões. Acabou de chegar de Kirina, onde derrubou um terrível e sanguinário déspota, o famoso Sumaro Kanté. À sua frente, alguns companheiros sentados e em silêncio. Além, um mar humano. À sua direita, Balla Fasseké, o seu melhor amigo, fiel servidor e djidiu. Estamos na cerimónia de Kouroukan-Fougan, a cerimónia da “Partilha do Mundo”. Sundjata Keita, filho de Sogolon, a mulher-búfalo, e Naré Maghan, o homem-leão, acaba de conquistar um império tão vasto e tão potente que subsistirá sob diversas formas durante cerca de 500 anos. E à sua frente estão 12 reis à espera do sinal para se submeterem ao seu poder e declará-lo Imperador.
Esta história chegou até os tempos modernos graças aos djidius que o escritor Djibril Tamsir Niane ouviu para escrever o notável romance “Sundjata ou a Epopeia Mandinga”. “É um ofício sagrado. O djidiu tem um homólogo material cedido. Nele coabitam dois reinos: um humano e um sobrenatural. Aliás, a palavra mandinga ‘djinno’ significa djin (espírito)”, nota Mário Cissoko.
Tal como Balla Fasseké, os djidius estavam ligados à família real, cujo poder enalteciam vezes sem conta. De igual modo, preocupavam-se igualmente com os súbditos do rei, mostrando-se atentos aos diferentes problemas da sociedade, zelando pela boa coabitação entre diferentes famílias ou animando. “Ele fala através de códigos e é muito respeitado”, precisa Cissoko, acrescentando que “na Guiné, costuma-se dizer que ‘djidiu ka ta lebsidu’, isto é, ninguém falta respeito ao djidiu senão vai ser perseguido pela infelicidade. Nas guerras, não se toca no djidiu mesmo quando o seu rei é morto e o exército derrotado.”
Todos os episódios por ele presenciados são depois transmitidos ao povo sob a forma de cânticos ou contos ao som de um instrumento musical. A existência mesmo dos djidius estaria ligada à música, ao cântico, daí serem também chamados músicos hereditários. A função de djidiu teria nascido num dia em que o rei e o seu irmão andavam perdidos na mata. Depois de muito tempo a andar, a fome e o cansaço apoderaram-se deles e o rei, vendo que o seu irmão já não tinha força, disse-lhe: “Espera por mim debaixo desta árvore. Vou ver se consigo alguma caça para podermos comer.” Mal se afastou, pegou numa faca e cortou uma perna que grelhou imediatamente. Em seguida, levou a carne ao pé do irmão, que estava a dormir e sentou-se debaixo de uma outra árvore. Estava a perder muito sangue. O irmão mais novo acordou, comeu e, vendo que o rei se mantinha afastado, perguntou porque ele não comia. Foi então que notou o que rei fizera por ele. Levantou-se, aproximou-se dele e, chorando, disse: “Hei-de cantar, sempre, para te recordar e contar a tua história.”
Na etnia Mandinga, há dois instrumentos ligados ao djidiu (8): o balafon e a kora. Noutras etnias, o djidiu utiliza instrumentos musicais diferentes: na etnia Pepel, utiliza-se o simbi (uma viola) enquanto na etnia Beafada prefere-se o pandjadika (um antepassado da kora). Por sua vez, o Balanta Mané toca o bala sofala (do nome da cidade moçambicana de Sofala), instrumento tocado por duas pessoas.
Com o tempo, muitos djidius começaram a ter uma vida artística, actuando em grandes festas, como casamentos, e em actividades lúdicas. De igual modo, foram recorrendo a outros instrumentos, como o djémbé, ou actuando em duetos ou grupos. Hoje, na Guiné-Bissau, como noutros antigos territórios do Mandé (Mali e Guiné Conacri), a música mandinga tem duas correntes: uma tradicional, em que o djidiu mantém-se fiel à sua função de mestre da palavra, ao som da sua kora, e uma moderna, com a introdução de instrumentos eléctricos. Entre os artistas tradicionais da música mandinga guineense destacam-se Saku Djamé ou Baransam. Já Sambalá Kanuté e Braima Galissá são as figuras de destaque da tendência moderna.
Braima Galissá é filho de Abudo Galissá e neto do lendário Buli Galissá, ambos famosos tocadores de kora. Galissá (o apelido significa verídico ou genuíno em mandinga) é um título que foi dado especialmente à sua família pelo Rei Nhantchó, de Kaabu, como reconhecimento da origem antiquíssima da arte dos Galissá e pelo facto de serem os inventores da kora. Antigo compositor do Ballet Nacional da Guiné-Bissau, reside há vários anos em Lisboa, onde vem mistuando a sua música a ritmos modernos.
A evolução melódica introduzida pelos novos rostos da música mandinga não alterou contudo a mensagem dos djidius. “A música mandinga de hoje, mantendo os ideais da história e da grandeza africana, é feita na base do intervencionismo e chamada de atenção sobre o respeito dos valores que fazem de nós seres humanos. Por exemplo, inspiro-me na história do século anterior, em que a música e o conto tiveram o condão de apaziguar guerras e conflitos. Devo lembrar-vos, por exemplo, o papel que a kora teve no conflito entre a Guiné Conacri e o Mali nas décadas de 1940 e 1950. Após diversas inciativas fracassadas para a obtenção da trégua foi preciso a intervenção dos djidius da zona para o fim das hostilidades”, explica Kanuté.
V.M. com Muniro Conté
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Notas
8) Correia, João C., ob. cit, p. 28 e 50.
Pedro Sitoe diz
Muito interessante. Aprecio a musica mandinga há já bastante tempo mas nao tenho tido oportunidade de ler sobre ela com mais vagar.