As cantigas de mandjuandadi *
As mandjuandadi são colectividades, associações ou grupo de pessoas da mesma idade ou da mesma geração que se organizam para confraternizações e apoio mútuo em ocasiões ou circunstâncias diversas. Porém, na voz das nossas garandi (as mais velhas), mandjuandadi é mais do que uma associação de pessoas, é silistia, isto é, harmonia.
As mandjuandadi nasceram no meio citadino (Bissau, Bolama, Cacheu, Farim e Geba), surgindo da necessidade do autóctone ter um modo de estar numa sociedade que emerge do embate entre dois povos e várias culturas diferentes. Surgem pequenos grupos com uma forma de estar diferente dos puramente tradicionais, cada um trazendo algo da sua etnia. Nos seus momentos de entretimento, estes grupos teriam começado com o gumbé, seguindo-se a rumba, o baile de sala, mas sempre estratificado por idade.
Apareceram há mais de 100 anos. O compositor guineense Atchutchi situa o nascimento das mandjuandadi por volta de 1944, mas há quem aponte o período entre 1915 e 1930. Uma terceira possibilidade é a trazida pelo relato da tia Antera Inácia Gomes, rainha da Bolamense, cuja avó (Inês Soares), nascida em 1880, pertenceu a uma mandjuandadi. O facto podia ter ocorrido quando ela contava 16 ou 18 anos, o que aponta para a hipótese desta colectividade ter surgido por volta de 1896, 1898. Uma quarta hipótese é a recolha das cantigas feita pelo cónego Marcelino Marques de Barros, no século XIX, que inclui cantigas de ninar e faz referência à cantadeira Nharambane e à desconhecida cantadeira de “nha menino” (o meu menino).
Como em qualquer organização, as mandjuandadi são confrontadas, por vezes, com intrigas, invejas eventuais entre os seus membros e diz-que-diz que acabam quase sempre em cantigas de ditu. Em crioulo, ditu e mais especificamente bota ditu significa crítica dirigida directa ou indirectamente a alguém. Cantigas de ditu ou de mandjuandadi são pequenos textos cantados em certas colectividades por ocasião de celebrações especiais, tais como festas de noivado, de casamento, cerimónias de choro e muitas outras. A maioria delas é cantada por mulheres e inventada na ocasião. É de ditu porque se trata de respostas a uma situação como, por exemplo, acabar com uma desavença. Nalguns casos, pode-se emprestar o termo ‘cantigas de maldizer’ e ‘cantigas de escárnio’, quando se ridiculariza ou diminui uma pessoa através de uma forte ironia.
Se em algumas cantigas, para se evitar equívocos, as cantadeiras evocam o nome do amigo ou da amiga a quem se pretende responder, aconselhar e/ou acarinhar, noutras inventa-se uma alcunha ou antonomásia para se referir a pessoa cantada.
As cantigas são consideradas centro da colectividade, o coração da mandjuandadi pois são elas que dão vida a um encontro. São entoadas acompanhadas ao palmo (instrumento de madeira feito aos pares e que serve para matraquear), ao ritmo de nina, morna, kumboi (comboio) ou kafe kinti (café escaldante). As cantigas têm um grande valor pelas mensagens que transmitem, apesar de muitas serem fruto da improvisação. Retratam o âmbito social e cultural, a solidariedade, a disciplina, o civismo e a tolerância que asseguram a convivência numa mandjuandadi. Têm um valor contestatório, crítico, de chamada de atenção.
As cantigas de ditu ou de mandjuandadi são expressões da vivência de toda a colectividade e são produzidas individualmente e passadas ao grupo que dela se apropria, servindo as mesmas para casos similares ao que estaria na origem da sua produção. Elas surgem quando o indivíduo/grupo rejeita um comportamento ou uma acção – aqui a cantiga censura; são produzidas também para reparar um mal-entendido. Assim, a cantiga pode surgir como um meio de qualificar o sujeito, assim como pode ocorrer para conciliar, reparar, reclamar atenção.
São chamadas cantigas de mandjuandadi porque é justamente durante encontros desses agrupamentos que são cantadas e dançadas. Elas são inventadas, memorizadas e mentalmente* elaboradas. E por serem cantigas memorizadas, vão passando de boca em boca, de geração em geração, sofrendo modificações ao longo dos tempos. A linguagem é metafórica, muitas vezes irónica, codificada.
A fonte onde se vai buscar água ou lavar roupa é o espaço ideal para a criação de cantigas. Os ritmos, tons musicais e letras vão aparecendo enquanto se rola a roupa na tábua inserida na tina (selha feita de barril cortada ao meio, o mesmo utilizado como instrumento de percussão nos momentos de festa). São poemas, textos contendo provérbios e preces com significados muito profundos; evocam o sentimento pela terra natal, cantam a amizade, o amor, lamentam as desavenças, a rivalidade; nelas se expressam a angústia da violência doméstica e os demais problemas no seio de um casal.
Para ilustrar, seguem alguns exemplos de cantigas de ditu.
A cantiga abaixo é de maldizer, em que a esposa dirige o ditu directamente ao marido, invocando-o através de um epíteto, normalmente usado quando não se quer chamar a pessoa visada pelo seu próprio nome, Kunsidu di nom (conhecido pelo seu bom nome). Desapontada com o marido, a cantadeira ameaça abandonar o lar, deixando subentendido no texto que iria dar um novo rumo à sua vida e tomar conta de si, talvez arranjar um novo amor… Só quando ficar completamente cego à luz do dia, quando virar morcego – responde-lhe o marido.
Fala di mindjer:
Kunsidu di nomi
bu ta kontan nhu rei
ami Suar
Suar na bai ianda
—
O kunsidu di nomi
ke kontan nhu rei o
ami Suar o
Suar na bai ianda
—
Fala di omi:
Ianda di Suar oh
i ora ku n bida mursegu
rabada na seu
Suar ta ba ianda
—
Ianda di Suar oh
n bida mursegu
rabada na seu
Suar ta ba ianda
Voz da esposa:
Fidalgo/conhecido pelo seu bom nome
diga ao senhor nosso rei
que eu, que me chamo Soares
Soares vai sair a andar por ai
Oh fidalgo/conhecido pelo seu bom nome
diga por mim ao senhor nosso rei
que eu, Soares
Soares vai sair a andar por ai
—
Voz do marido:
O sair andar de Soares
há-de acontecer quando virar morcego
vampiro de rabo virado para o céu
aí sim, a Soares sairá para ir andar
—
O sair andar de Soares
virei morcego
de rabo para o céu
Soares sairá andando por aí
A cantiga que se segue é um retrato da vida doméstica em que se assume, através do sujeito do texto, que todo o valor, o respeito de uma mulher se baseia no casamento. Cantada em desgarrada: a primeira estrofe é dita pela mulher violentada pelo marido, a que a cunhada responde na segunda estrofe pedindo àquela que não abandone o lar, pois é ali que reside todo o seu respeito de ser mulher.
Nha kunhada
kontan bu ermon o
Kuma n ka pudi mas sufuri
ami n na ruma kargu
—
sufuri, sufuri nha kunhada
sufuri, sufuri nha kunhada
balur di mindjerndadi o
i na porta di kasamenti
Cunhada minha
conta ao teu irmão
que já não posso mais sofrer
vou fazer as malas
—
Releve, releve cunhada minha
releve, releve cunhada minha
que o valor de ser mulher
está (na porta do) no
casamento
A palavra, contada ou cantada, enquanto discurso e mensagem, quer através do simples acto de comunicar quer através de textos ditos, constitui uma potência, um forte instrumento de comunicação, sobretudo em ambientes onde o índice de analfabetismo atinge proporções gritantes.
Na mesma linha, diríamos que a palavra tem um peso muito importante nas cantigas, não só pela carga psicológica transmitida através do jogo metafórico, da ironia, do escárnio, mas também pela jocosidade e pelo lirismo com que consegue captar o cerne de uma situação, catapultando a imagem, transpondo-a para além daquilo que poderia ser o seu limite. A palavra cantada é por excelência portadora da mensagem validada pelo som da tina, pelo ritmo que dá ao conjunto o toque necessário para cumprir o seu papel na margem da vida social, ligando e interligando o lúdico à realidade do dia-a-dia, na maioria das vezes dura e difícil, levando de dentro para fora ecos da terra.
Odete Costa Semedo
* Excertos do texto “Ecos da Terra”, da autoria de Odete Costa Semedo. In: Mata, Inocência e Padilha, Laura Cavalcante. A Mulher em África: Vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: 2007, p.103-133.
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