Kanta-Pó: quando os Balanta escolhem os melhores
O kanta-pó é, a par da luta livre e prática de pequenos delitos, como o roubo de gado, das actividades lúdicas mais apreciadas pelos jovens Balantas durante a fase de experimentação, isto é, no período de iniciação à vida adulta. Kanta-pó é uma festa popular e de convívio dos jovens balantas da mesma tabanca e da mesma idade, mas privilegiando a competição, o mérito e o saber cantar e dançar. Um bom cantador recebe como recompensa o respeito e a simpatia dos elementos da tabanca, sobretudo das raparigas. Um bom cantador chega a ser convidado para festas em várias localidades ao mesmo tempo, tal é a fama que granjeia entre os elementos da sua geração. Um bom cantador é tido como um galã da tabanca. Contudo, às vezes, essa fama traz muitos reveses para o galã, quando começa a despertar atenção junto das noivas dos anciãos da aldeia, situação que acaba por custar caro ao jovem durante o fanado.
Ao contrário da festa do fanado, o kanta-pó não visa qualquer objectivo específico a não ser dar oportunidade aos jovens nkumans e nhayés para que possam retratar, com cantigas de escárnio, o momento e a sociedade em que vivem. A sociedade balanta, apesar de observar uma linhagem horizontal, tem estratificação social, pelo menos entre os indivíduos jovens ainda não iniciados. Entre vários subgrupos, destacam-se os nhayés e os nkumans. Numa palavra, sublinha-se que são fases da adolescência ou juventude em que a um jovem é permitido toda e qualquer diatribe sem ser censurado pela sua comunidade. Todavia, algumas das suas acções são mal compreendidas e mal aceites em comunidades não balantas.
Num total ambiente de liberdade e de borga, o kanta-pó decorre durante três dias, regra geral de sexta a domingo. Porém, é uma festa preparada durante todo o ano e para acontecer entre os meses de Junho ou Julho. Os jovens cantadores aproveitam o período da lavoura para, em associação, venderem a sua força aos donos dos campos da lavoura, angariando desta forma dinheiro e produtos alimentares (animais de abate, aguardente ou vinho) que serão utilizados nos dias da festa de kanta-pó.
Por exemplo, um grupo de nkumans da tabanca de Ntchan pretende realizar o seu bbalack (kanta-pó) no próximo ano, faz reuniões periódicas durante o ano que antecede a festa, e quando tiver tudo preparado avisa a tabanca das suas pretensões e anuncia a data em que pretende realizar a festa. Se a festa tiver lugar na última semana do mês de Julho, por exemplo, dá-se início à fase da materialização da iniciativa logo a seguir ao anúncio público do kanta-pó de Ntchan. Cada um dos jovens do grupo terá a sua tarefa específica. Uns irão contactar as pessoas que queiram contratar o grupo para a lavoura dos campos agrícolas, outros irão estabelecer contactos com o(s) grupo(s) rival(ais) com os quais pretendem medir forças no kanta-pó e outros ainda são incumbidos da tarefa de preparar as cantigas.
Tudo isso é feito em perfeita sintonia com os omis garandis da tabanca que, embora não fazendo parte dos preparativos, são sempre avisados do que se passa e quais as necessidades do grupo. Os anciãos são conselheiros dos jovens, mormente na análise das cantigas que serão apresentadas na festa. Os preparadores das cantigas, em geral os jovens mais afoitos e extrovertidos, reúnem-se com o grupo para apresentar as propostas e os temas que versarão as cantigas. Em geral, as cantigas retratam questões ligadas ao amor, à traição, à infidelidade, à valentia, à coragem, à astúcia no roubo do gado, à força na lavoura. No entanto, as cantigas nunca incluem o nome da pessoa visada. Escárnio sim, mas jamais injúrias.
O kanta-pó é uma actividade essencialmente dos rapazes, mas sempre em colaboração com as raparigas, que servem de vozes de coro na hora da festa. O cantador principal do grupo canta e as raparigas respondem, já que sabem de cor e salteado a cantiga, fruto de longos períodos de ensaios. Os ensaios fazem-se durante a noite, no fim da jornada de todos os elementos da tabanca. Após os preparativos, sem que antes os concorrentes recorram aos djambacuses, balobas e mouros (os feiticeiros da tabanca), pedindo-lhes ajuda extra para que a vitória possa sorrir ao grupo, chega-se ao dia D.
Logo pela manhã, começa-se a festa. É o bulício total na tabanca. Os jovens cantadores descansam e bebem muito mel para preparar a garganta para a jornada da cantiga. Os anciãos, já picados pela iniciativa, consultam pela enésima vez os feiticeiros pedindo protecção aos rapazes. Duas da tarde, com o sol a pino, dá-se início ao bbalack. Cada grupo sai à rua com a sua indumentária própria. Em geral pouca roupa, mas muita cor. Jovens vestidos com roupa de mulher, enfeites, lantejoulas, guarda-chuvas, perucas de senhora, dentes postiços, óculos, são alguns dos adornos dos cantadores. Faz-se de tudo para impressionar.
As cantigas são apresentadas sob a regra da pirâmide invertida. As melhores cantigas, aquelas que o grupo acredita serem portadoras de maior carga simbólica ou emotiva, são guardadas para os últimos dias da festa. Mas, se o grupo estiver em desvantagem em relação ao grupo concorrente, faz apelo às suas melhores cantigas para arrebatar o curso da festa. Ainda que a referência geral no momento da festa seja feita ao cantador principal, os louros e os desaires são do grupo. Assim, quem estiver a cantar melhor, isto é, a apresentar a melhor cantiga, acaba por reunir o maior número de espectadores. Se um grupo juntar o maior número de pessoas na festa durante largos períodos do Canta-Pó, é sinal de que apresentou as melhores cantigas e é declarado vencedor.
Ao contrário das outras festas populares balantas, o bbalack não precisa de qualquer instrumento, por exemplo o tambor ou o bombolom, mas apenas a voz dos cantadores. Quem tiver a garganta afinada, boas melodias e cantigas a condizer, tem mais probabilidades de levar a melhor. Às vezes, a coisa é tão renhida que é preciso apelar à sapiência dos anciãos da tabanca para que se escolher o vencedor do Canta-Pó. Quando é assim, estes guardiães da tradição, reúnem-se e deliberam por consenso qual o grupo vencedor do bbalack. O veredicto é logo aceite por todos, até ao próximo bbalack que pode ocorrer num horizonte de três a quatro anos. Após a festa e o veredicto do vencedor, dá-se início a uma outra festa, com muita aguardente, vinho e carne de porco, durante a qual acontecem situações próprias quando se está entre jovens.
Mussá Baldé
Euclides diz
texto extremamente importante. Parabéns ao Mussa pela assertividade na narrativa.