Fanado, casamento e morte
A constatação é dos autores do “Atlas dos Instrumentos Tradicionais da Guiné-Bissau”(9): “Na Guiné-Bissau, cada um, no interior da sua etnia, aprende os cantos e as danças que lhe estão destinadas conforme o sexo, o facto de pertencer a esta ou aquela classe de idade, ou conforme a sua função social.” A música é uma constante durante a infância, no fanado, no culto às divindades e espíritos, nos casamentos, nas festas tradicionais e mesmo quando se trabalha, como nesta canção mandinga onde o autor realça a importância do trabalho agrícola:
Sênó diata nhilê nhé dokó leké / Aaaaa olebe konkoó bomdela / Nhilê kokee senolé diata / M’bafô lalué nhilê dokó oleké (Levantemos e trabalhemos. A lavoura é agradável. Ela é que nos vai matar a fome. Meus irmãos, levantemos e trabalhemos. A lavoura é agradável).
A presença da música na agricultura é lógica, visto se tratar da principal actividade económica do país, destacando-se a cultura do cajú (principal produto de exportação) e do arroz. “Existem dois tipos de canções ligadas à agricultura: as cantigas de competição (kompoti, que vem do português competir) e as cantigas de estímulo ou motivação (djamu pekadur, em crioulo). No primeiro caso, elas acompanham o trabalho dos agricultores, que lutam para saber quem primeiro termina o trabalho na bolanha. Em relação ao segundo, o cantador, tal um djidiu, enaltece o agricultor, lembrando os seus antepassados, tidos como grandes trabalhadores. A pessoa trabalha com muito mais ânimo”, explica Augusto Mango, líder comunitário e responsável de projecto na região de Cacheu.
As canções ligadas à lavoura são interpretadas tanto pelos homens como pelas mulheres. Para realçar o lado competitivo da actividade, as mulheres colocam a refeição numa das extremidades da horta como para dizer “o primeiro a chegar é o primeiro a comer”. De acordo com Mango, muitos casamentos de outrora resultavam do empenho de um agricultor, na medida em que os pais não hesitavam em dar-lhe a sua filha em casamento, pois tinham a certeza que ele nunca a deixaria “morrer de fome”: “Naquele tempo, o valor da uma pessoa media-se pela sua dedicação ao trabalho.”
Quase todas as actividades ligadas ao sector primário têm uma componente musical. Os criadores de gado (a maioria é Fula) e os pescadores (maioritariamente membros da etnia Pepel) cantam consoante o momento. As cantigas ligadas à pesca têm uma função estimulante, para que o pescador trabalhe com mais afinco, mas algumas são igualmente entoadas quando o mar torna-se bravo e as dificuldades aparecem. Este refrão tirado do repertório pepel é disso exemplo:
“Pato pato / Patoka ushenne / Pato pato / Patoka ushenne” (Rema, rema com força. Não deixa de remar).
Conforme escreveu Mariana Ferreira em “Sons da Tradição” (10), existem algumas regras a seguir antes do indivíduo ou o grupo entoar um cântico. Numa referência aos Bijagós, a autora nota, por exemplo, que “não é qualquer canção que se executa durante as cerimónias de iniciação, casamento ou enterro. Para cada momento, há canções específicas que têm um sagrado de ritual”. (11) De igual modo, muitas canções não são cantadas em público ou perante um estrangeiro. Na mesma obra, Ferreira traz igualmente um exemplo relacionado com a etnia Manjaca onde, por exemplo, “a mulher grande, chefe do grupo, entornará aguardente nos instrumentos que acompanharão as cantoras e agradecerá ao Iran a permissão de cantar, oferecendo a este também aguardente de cana”.
No entanto, apesar do seu caractér sagrado e secreto, há sempre uma parte popular festiva em torno dos grandes acontecimentos da vida do guineense, com canções homenageando estes momentos. É o caso do fanado, frequente nas sociedades muçulmanas (Fula, Mandinga, Beafada, etc.) e animistas (Balanta, Mancanha, Manjaca, Bijagó, Pepel, Felupe, etc.). Nas etnias Mandinga e Fula, o fanado consiste na excisão ou mutilação genital feminina, prática que afecta anualmente várias centenas de crianças, jovens raparigas ou mulheres em idade fértil. Nhamu Turé, submetida ao fanado di mindjer já lá vão vários anos, evoca o lado festivo da cerimónia com danças e canções em honra das meninas ou mulheres. Nesta canção mandinga, o autor destaca a fase de transição da “excisada” e a protecção que lhe é proporcionada por um lambé (que desempenha as funções de protector e servente), nesta fase em que é considerada fraca.
“Saila-iah nhanssiun bê saila-iah/A na la ianô/ Saila-iah nhanssiun baladjamba/ ”
(Esta nova excisada estava na mata. Estava numa barraca amarga e agora ela vai para uma barraca doce mas ela não vai sozinha. Vai com o seu protector).
A música guineense é rica em ritmos próprios do fanado: o djambadon no seio dos Mandingas, o nhanhero entre os Fulas, enquanto os Felupes tocam o berkutabu numa cerimónia de fanado que se realiza de 30 em 30 anos. Na etnia Bijagó, a iniciação varia consoante o sexo. No caso da mulher, o fanado é também conhecido como cerimónia de defunto, pois a mulher é suposta reencarnar a alma de um homem morto. Após a cerimónia, que chega a durar um mês nalgumas comunidades, ela é finalmente considerada uma mulher.
Consoante a comunidade, são feitas incisões na sua barriga ou no braço. Em relação ao homem, os rituais de passagem são vários: o kanhocam (que marca a passagem da criança à fase da adolescência), o kabaro (de adolescente para jovem e adulto) e o kamabi (de jovem ou adulto para homem grande). O homem, já com uma certa idade, deixa a sua família e a tabanca para a mata, onde permanece largos anos, para depois voltar e com o estatuto de omi garandi. Essas diferentes fases rituais têm uma tradição musical. A mulher canta e dança até entrar em transe. No caso do kamabi, o candidato a omi garandi costuma cantar e dançar quando encontra pessoas na mata. No momento do kabaro, o jovem, com o rosto escondido atrás da mâscara de um animal (touro, tubarão, crocodilo ou gazela, que simbolizam força, agilidade, ferocidade e rapidez, respectivamente), canta e dança até a exaustão.
Na etnia Balanta, exceptuando os Balanta Mané, apenas o homem se submete ao fanado. Este momento é tão importante que o homem tudo faz para vivê-lo, como mostram as letras desta canção em que o autor se vangloria do roubo de uma vaca:
“Uuuei fan ni n nhare nghanh woo/Klode ute mnim uo abala nka ia ioe /Sanha fan ni nnhare nghata, nhare ma nto us a gbagn/Bu san oee fan ni n nhare nghan ni ioi/Klode ute mnim bobo a bala nka iaa/Sanha fan ni n nhare nghanta nim bo abala nka ia, n nhare ma nnhit nus a gbagn ”(Estão a dizer-me que o dono da vaca está a chorar/A morte chegou este ano e eu não tenho nada/Como vou fazer?/Sanhá, o dono da vaca está a chorar / A vaca dele eu vendi em Bissau).
O casamento é outra etapa da vida extremamente importante tanto nas sociedades verticais como nas sociedades horizontais. Na etnia Bijagó, a estrutura matriarcal da sociedade estabelece que sejam as mulheres a fazer o pedido de casamento, e os homens não podem recusar. Elas fazem a proposta publicamente, oferecendo ao noivo um prato de peixe preparado, segundo a tradição, em óleo de palma. É uma excepção, pois, nas restantes etnias, predominantemente animistas, o pedido de casamento consiste na cerimónia do kabás ou leba kabás (animistas). Na comunidade muçulmana, vigora a chamada leba kola, em que o noivo se apresenta à casa da noiva com cinco colas envoltas numa folha seca da árvore. Se o pai desta estiver de acordo, abre o embrulho e divide as colas com os familiares presentes. Segue-se o casamento e as homenagens à noiva como nesta canção mandinga:
Manho o aliketala manhoo/Ndemanho kala/Manho o aliketala manho/Ndemanho kala/Manho o ansomala manho/Ndemanho kala (Esta noiva que se está a levar é famosa / Só uma noiva famosa é que é levada).
No caso dos animistas, nomeadamente os Manjacos, o kabás é levado à casa dos pais da noiva pelas 19 horas. “Na verdade, existem quatro tipos de kabás: um primeiro quando se pretende anunciar o namoro com a rapariga, um segundo para indicar que a menina engravidou, um terceiro para assinalar o noivado e um quarto para marcar a data do casamento”, nota Alda Costa Biai. Dentro do kabás são colocadas garrafas de vinho, linha, agulha e um botão (significa que a roupa do marido deverá estar sempre em bom estado), velas e fósforos (a mulher pode passar o dia fora da casa ao longo do dia, mas deve regressar no final da tarde para acender a luz), um envelope com dinheiro (ela deve guardar parte do dinheiro ganho pelo marido para ser utilizado no dia em que houver necessidade) e uma carta pedindo a noiva em casamento. “O pai chama então a filha e pergunta-lhe se conhece o rapaz e se quer casar. Se ela aceitar, abre a cabaça e oferece parte do seu conteúdo à família do noivo”, acrescenta Biai. Segue-se a festa, ao som vozes e de tambores.
Algumas cantadeiras como Domingas ou Néné Pilita, em Cacheu, acompanhadas dos respectivos grupos de mulheres, popularizaram este estilo próprio dos casamentos. O momento é propício a todas as brincadeiras, inclusive gozar com a família da noiva para fazelá-la chorar, mas tudo acaba bem no meio de risos e muita bebida:
“A kukui, a kukui/Nitidji na bas ku tendim nhan ó ó/A kukui, a kukui/Ndoma ku temi nan ki i tendun nasau/A ku kui, a ku kui” (Como podem dar a vossa princesa a um estrangeiro? Como podem fazer isso?).
Presente ao longo da vida do guineense, a música comparece naturalmente no momento da morte, sobretudo nas etnias predominantemente animistas. A idade e a função social da pessoa determinam a forma de homenagem. “São cantigas muito tristes (kantigas di sintimentu), quando se trata de um jovem, e de homenagem para os idosos (kantigas di tchur)”, segundo Augusto Mango. Na cultura manjaca, por exemplo, se for o chefe da tabanca a falecer, utiliza-se o bombolom para dar o primeiro sinal, depois lança-se a pólvora e em seguida, um homem tocando flauta percorre a localidade para anunciar o ocorrido. Os choros evocam os antepassados, mas quando se trata do primeiro filho da família, algo considerado anormal, pede-se ao defunto para voltar porque aquele lugar não é dele mas sim dos velhos. Na etnia Bijagó, o choro faz-se através do canto, mas só se pode chorar depois de se saber que a morte foi natural, e para tal é necessário consultar os espíritos. Procede-se, então, a uma cerimónia chamada djongagu.
O toca-tchur é o ponto culminante das homenagens aos defuntos, com a tina e o bombolom, mas também o kunderá e o tchossani a darem o mote rítmico. A cerimónia começa habitualmente numa quinta-feira e termina num domingo. No toca-tchur da etnia Mancanhe, a música é essencialmente instrumental, com o bombolom a marcar o ritmo.
De uma forma geral, a estrutura formal das cantigas de casamento, trabalho, fanado ou funeral caracteriza-se, quer pela repetição frásica através da alternância entre o solista e o coro (conhecida como forma responsorial ou responsório) quer através da alternância de dois grupos de vozes (designada por antífona ou forma antifonal). A alternância é feita de três formas distintas, segundo os parâmetros musicais ocidentais: o coro repete exactamente o texto e a música do solista, o coro canta o texto e a música do início da alínea ou o coro responde ao solista com texto e música diferentes.
V.M.
Notas de rodapé:
9) Correia, João C., ob. cit, p. 7.
10) Ferreira, Mariana, ob. cit., p. 11.
11) Ferreira, Mariana, ob. cit., p. 19.
Aladji diz
Muito obrigado a vocês